quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Alpha (França/Bélgica, 2025)


“Alpha” retorna ao terreno do horror corporal que Julia Ducournau domina, mas desta vez veste-se de fábula distópica. Situado entre os anos 80 e 90, o filme acompanha Alpha (Mélissa Boros), uma adolescente de 13 anos que vive com sua mãe solteira, na esteira de um vírus fictício que transforma pessoas em estátuas de mármore. O catalisador surge quando Alpha volta da escola com uma tatuagem no braço,  um gesto de autonomia que acende pânico: a mãe, médica, teme contágio; o mundo, repressão. Exibido em Cannes 2025, o longa parece querer revisitar os medos da epidemia de AIDS com corpo jovem, com metamorfose e silêncio.

Logo nos momentos iniciais, Ducournau investe na atmosfera sensorial: luz crua, interações familiares tensas, ruído hospitalar, paisagens quase liminares entre a vida e a morte. A estética é forte: os corpos que se petrificam, fissuras na pele, a transformação em mármore, efeitos visuais e práticos que remetem ao grotesco, ao belo, ao símbolo religioso ou gótico. Ruben Impens na fotografia cria superfícies que brilham, mármore, pedra, mas também sombras onde a identidade se esconde. A câmera frequentemente observa de perto a pele, o suor, o sangramento da tatuagem.


O componente queer emerge nessa alegoria da doença, do corpo que muda e se torna estranho. A petrificação funciona como metáfora da estigmatização: do outro que é visto como contaminado, do corpo marcado, seja pela tatuagem, pela suspeita, pelas cicatrizes visíveis ou invisíveis. "Alpha" remete diretamente aos medos da AIDS, com sua moralidade punitiva, o silêncio institucional e o pânico social. A tatuagem, nesse contexto, volta-se contra o corpo da protagonista: tanto um ato de gente autônoma quanto um selo de possível exclusão.


Mas “Alpha” não escapa de falhas. Em algum momento a narrativa se perde em sua própria ambição: tempos narrativos alternados, ritmo oscilante, gestos simbólicos que às vezes parecem gratuitos ou pouco explorados. Alguns momentos de horror corporal visualmente potentes perdem impacto emocional porque o filme demora em metáforas que não desenvolve plenamente. A mãe de Alpha, o tio dependente (interpretado por Tahar Rahim), a doença etc.


Ainda assim, há momentos de impacto singular: a solidão de Alpha, seu isolamento escolar, a reação dos colegas ao sangramento da tatuagem , cenas que ferem, que riscam a casca da normalidade. A performance de Mélissa Boros como Alpha é central: ela carrega o peso desse átimo entre inocência, desafio e medo. Golshifteh Farahani, como mãe, sustenta o conflito entre cuidado e controle; Rahim emerge como figura perturbadora, um familiar comprometido pela doença, pela culpa e pela distância.


“Alpha" é uma obra polarizadora: visionária e frustrante, bela e severa, angustiante como só o horror que se vê no corpo (ou no espelho) pode ser. O filme oferece tanto reflexo quanto espinho, a urgência de existir, de marcar o corpo, de resistir ao petrificar do invisível. Ducournau nos lembra que nem toda doença precisa ser nomeada para que sua sombra paire: medo, controle, desejo, identidade, tudo isso se entrelaça no mármore, na pele, no não-dito

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