sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Nova'78 (EUA/Reino Unido/Portugal, 2025)

“Nova ’78” é muito mais do que um registro histórico, é uma cápsula de tempo que explode em relevância contemporânea. Dirigido por Rodrigo Areias e Aaron Brookner, o filme revisita a Nova Convention de 1978 em Nova York, encontro que juntou gigantes da contracultura como William S. Burroughs, Patti Smith, Laurie Anderson, Allen Ginsberg, John Cage, Philip Glass, Merce Cunningham, entre outros. A partir desses ícones, o filme costura memórias de liberdade artística, experimentação estética e radicalismo político.

No centro do documentário está Burroughs, figura magnética, controversa, síntese viva de contradição. Depois de décadas vivendo fora dos EUA, ele retorna para falar, discursar e desafiar. Seu discurso na abertura da Nova Convention, suas interações com artistas presentes, tudo isso é resgatado não só como curiosidade biográfica mas como ato político: Burroughs encarna o outsider, o marginal, o queer latente. Sua visão distópica em 1978 ressoa hoje como profecia, o controle, a vigilância, a fragmentação social.


“Nova ’78” brilha no formato do arquivo restaurado: filmado em 16 mm por Howard Brookner, com som direto de Jim Jarmusch, o material ficou perdido por décadas até ser redescoberto. A restauração respeita a textura, poeira do filme, granulação e ruído. Essa rudeza preserva o que o documentário representa: a memória de algo vivo, cru e improvisado, e não uma peça de museu.


Há neste documentário uma forte pulsão queer, mesmo que sutil. Burroughs, enquanto pessoa gay, presença outsider, periferia da moralidade dominante, ícone da geração beat, domina estruturalmente a narrativa. A Nova Convention reunia vozes que desafiavam normas de gênero, sexualidade, expressão; Laurie Anderson, Ginsberg, Patti Smith, Frank Sappa, todos atravessados pela fluidez, pelo desempenho, pela desconstrução estética.

Mas o filme também traz seus dilemas. Por um lado, tanta reverência às figuras históricas corre o risco de aniquilar suas contradições,  Burroughs tinha falhas profundas, inclusive éticas, que o documentário toca, mas com mais sutileza do que seria necessário para  uma leitura integral. Em alguns trechos, a energia da convenção parece cristalizada em nostalgia, o que pode suavizar os conflitos vividos, entre inclusão e exclusão, utopia e limitação.


“Nova ’78” é um documento vital para a memória cultural. Ele lembra que a contracultura não é passado decorativo, e sim herança viva: das lutas por expressão, dos corpos que ousaram ser visíveis, das vozes que insistiram em existir. O filme é mais do que viagem no tempo: é uma reflexão sobre quem somos, como chegamos até aqui e com quem queremos nos alinhar. 

 


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