Por Bruno Weber
O mito da bugonia se refere a um antigo ritual mediterrâneo sobre a geração espontânea da vida. Basicamente, leva-se um boi crescido para uma pequena casa de proporções específicas onde ele será espancado até a morte, mas tomando-se cuidado para não derramar sangue. Então cobre-se todos os orifícios do cadáver com linho. As janelas e portas da casa devem ser fechadas com argila. Após três semanas, a casa é aberta. Onze dias depois, apenas os ossos do boi restaram, já que sua carne e sangue transmutaram-se em grandes enxames de abelhas, que agora cobrem as paredes internas da casa. Os insetos teriam nascido do cadáver, daí "bugonia", que se traduziria do grego antigo como "nascido do boi". Absolutamente nada disso é citado em Bugonia, novo filme do diretor Yorgos Lanthimos. Ainda assim, é possível traçar alguns paralelos entre esse antigo ritual e a trama do filme, e não apenas pela proeminente presença de abelhas em ambos.
Remake de Save The Green Planet!, filme coreano de 2003, "Bugonia" traz Emma Stone em sua quarta colaboração com Lanthimos, interpretando Michelle Fuller, CEO de uma grande farmacêutica. A personagem já nos é apresentada como uma figura superhumana, esse espécime da elite capitalista que se sente totalmente confortável numa rotina rigorosa de reuniões, entrevistas, treinos e dieta, sempre exibindo uma fachada de frieza e amabilidade. Mais um avatar do ideal do empreendedorismo do que uma pessoa. Não é a toa que Teddy, interpretado por Jesse Plemons, acredita que ela realmente não seja um ser humano. Teddy é, de várias formas, o oposto de Michelle: um pária, socialmente desconfortável, vivendo isolado numa casinha no meio do mato, se distraindo de seus traumas que vão se revelando no decorrer do filme apenas através da apicultura e de um constante fluxo de podcasts de teorias de conspiração. E após anos de investigações, ele conclui que Michelle faz parte de uma cabala secreta de alienígenas que controlam cada aspecto da vida humana. Tendo apenas a companhia de seu primo Don (Aidan Delbis, brilhante em seu primeiro papel), a quem convence a participar de sua cruzada contra os ETs, Teddy decide contra-atacar, sequestrando Michelle.
Presa no porão de Teddy, Michelle se transforma no receptáculo de todas as suas crenças e obsessões. Seu cabelo é raspado, para evitar que ela se comunique com suas nave mãe. Ela é forçada a sempre se lambuzar de hidratante, para diminuir seus poderes mentais. E após algum tempo, a tortura com choque elétrico começa. Aos olhos de Don - que até questiona as crenças de seu primo, mas se mantém fiel pela dependência emocional que tem por ele - esse jogo de captor e prisioneira entre Teddy e Michelle revela cada vez mais sobre o verdadeiro caráter de ambos. Se Michelle tenta aos poucos ceder aos delírios de Teddy, seja como estratégia para negociar ou como uma rendição ao absurdo de sua situação, ela ainda não consegue disfarçar o desprezo que sente pelos seus captores e o lugar que ela acredita que eles mantém na hierarquia: eles são perdedores, enquanto ela é uma vencedora. Mas é Teddy, que em certo momento conta que passou anos vagando entre vários movimentos e ideologias, do marxismo à extrema-direita, e somente encontrou sentido quando se jogou na mais absurda das fantasias conspiratórias, que ilustra bem a sensação de desconforto e paranoia das últimas duas décadas. É uma sensação da qual todos nós compartilhamos um pouco, mas que levou à ascensão de grupos como os antivacina, os incels e os terraplanistas. Pessoas que tem alguma percepção de que estão sendo enganadas, que o mundo não funciona como deveria, mas que não conseguem investigar as causas reais disso.
Com sua habitual abordagem que apela ao absurdo e ao desconforto, oscilando entre o horror físico e a comédia, Lanthimos cria em "Bugonia" um perfeito tratado do mundo atual, das fake news e dos fatos alternativos, onde a verdade é cada vez mais tratada como subjetiva. Assim, mesmo que Teddy afirme que seu objetivo ao sequestrar Michelle é o de contatar os alienígenas para negociar a liberdade da raça humana, tornando-se assim seu salvador, seu verdadeiro desejo é muito mais religioso. Ele quer manifestar a realidade na qual suas crenças fazem sentido, na qual toda a sua dor não foi em vão. De certa forma, ele faz de Michelle o boi no ritual da bugonia.
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