Um dilema presente em todas as cinebiografias e produções baseadas em histórias reais é como equilibrar a informação histórica com a mensagem que o filme quer passar e com a estrutura de um roteiro funcional. Em outras palavras, o que você omite ou altera da verdade para contar uma história? Há muitas respostas para essa pergunta, e é claro que varia para cada caso. Mas geralmente a qualidade final da produção compensa algumas imprecisões históricas. "Girl For A Day", filme baseado na história real de Anne/Jean-Baptiste Grandjean, não tem isso a seu favor.
O filme conta a vida de Grandjean (Marie Toscan du Plantier), que recebeu o nome de Anne quando nasceu em um vilarejo da França no século XVIII. Ainda bebê, suas diferenças físicas eram visíveis para os pais, que mesmo assim decidiram criar Anne como menina. Ao retornar para casa de um internato num colégio de freiras, Anne confessa ao padre do vilarejo que sente atração por mulheres. Querendo evitar um "escândalo maior", o padre convence o pai de Anne a mudar seu nome e suas roupas, para que o vilarejo entenda que a partir daquele momento, Anne será homem. E assim Anne se torna Jean-Baptiste.
O principal relato histórico sobre a vida de Grandjean vem dos arquivos judiciais que registraram os argumentos do seu advogado, Vermeil, que aqui é interpretado por Thibault de Montalembert. Aí entra a questão do retrato histórico. Em seu artigo intitulado "Imagined More than Women: Lesbians as Hermaphrodites", a escritora Emma Donoghue relata como, na França e Inglaterra do século XVIII, mulheres cisgênero podiam ser rotuladas como hermafroditas, até mesmo pelas autoridades. Tanto por uma falta de compreensão da medicina da época, quanto como uma forma de marginalizar ainda mais as mulheres transgressoras de gênero, resumindo-as a uma patologia. E o nome de Grandjean aparece em outros textos, com a descrição de uma mulher lésbica que se travestia. Ainda assim, o filme faz uma escolha consciente em retratar Grandjean como uma pessoa intersexo. O que por si só não é problema. Mas a obsessão que as pessoas ao redor de Grandjean têm com a sua biologia não difere muito da obsessão demonstrada pela própria narrativa. Grandjean não surge como personagem, mas como um alvo de ataques e humilhações, além de um objeto para a câmera voyeurística que explora seu corpo. Até o relacionamento com Mathilde, que deveria ser o foco emocional da narrativa, acontece rapidamente.
O diretor e roteirista Jean-Claude Monod, aqui em seu primeiro trabalho, não parece perceber essa contradição entre a trama e o enquadramento. Até mesmo as inconsistências de estilo parecem surgir dessa incerteza da direção. Há, por exemplo, dois momentos gritantes em que o filme opta por uma trilha sonora moderna, que são tão dissonantes a ponto de ficarem ridículos, como uma paródia ou uma montagem mal feita do Tiktok. Mas a falta de experiência do diretor não é desculpa. Esse também é o primeiro trabalho de Marie Toscan du Plantier como atriz, e ela atua muito bem. Ela usa muito do olhar para transparecer os vários momentos de Grandjean como uma pessoa que teme e deseja, e principalmente sua frustração ao passar por uma transição social mais de uma vez, por causa de pessoas aleatórias que não sabem nada de sua vida. Mas a direção e o roteiro simplesmente não a ajudam.
Mesmo com todos esses problemas - e mesmo que não seja papel da crítica recomendar ou não que se veja um filme - talvez Girl For a Day mereça ser assistido. Principalmente pela lamentável falta de histórias sobre pessoas intersexo. Pode até se tratar de uma parcela pequena da população, mas são pessoas que merecem ser retratadas, por suas tristezas e alegrias, que vão muito além de seus corpos.
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