Nos primeiros momentos de Misericórdia, novo filme do diretor Alain Guiraudie, acompanhamos a visão de Jérémie (Félix Kysyl) através do para-brisa de seu carro, enquanto ele dirige por estradinhas sinuosas do interior da França até chegar ao pequeno vilarejo de Saint-Martial. Há uma sequência parecida em outro filme de Guiraudie, o Na Vertical, de 2016, em que o protagonista dirige por uma cidadezinha sob os olhares nada convidativos de seus habitantes. As duas sequências têm o mesmo propósito, que é construir uma tensão sobre o local em que acompanharemos a história, indicando que há algum perigo em entrar ali. E Misericórdia entrega isso, mas é interessante perceber no decorrer da história que a ameaça em Saint-Martial vem na contramão do que se esperaria. Quase todo mundo na cidade ama Jérémie, de alguma forma. E é isso que a torna um pouco assustadora.
Após anos afastado, Jérémie volta para Saint-Martial para comparecer ao enterro de seu antigo chefe, o padeiro da cidade. Enquanto está lá, ele retoma o contato com alguns dos moradores, pessoas que foram presentes em sua infância e juventude. Como seu antigo melhor amigo Vincent (Jean-Baptiste Durand), o filho do padeiro. E também Walter (David Ayala), que era mais amigo de Vincent, mas de quem Jérémie sempre gostou. Mas, principalmente, ele forma uma nova e forte conexão com Martine (Catherine Frot), viúva do padeiro. Tanto que ela o convida para passar alguns dias na casa dela. O que ele aceita, passando a dormir no antigo quarto de Vincent.
Todos começam a se perguntar o motivo de Jérémie ainda não ter ido embora. Principalmente Vincent, que acha que ele está interessado na mãe dele. O que começa a ficar claro é que Jérémie e o padeiro foram amantes, e o fato dele e Martine terem amado e perdido o mesmo homem criou uma espécie de companheirismo entre os dois. Ao mesmo tempo, ele começa a se interessar por Walter, enquanto passeia pela cidade com um sentimento de nostalgia, cogitando até assumir o cargo de padeiro.
Porém, num momento de raiva descontrolada, Jérémie comete um assassinato. E se antes ele não queria ir embora da cidadezinha, agora ele não pode. A partir daí, o filme que se apresentava como um drama sensível começa a oscilar entre thriller policial e comédia absurda, enquanto Jérémie lida com a culpa que carrega pelo seu crime e tenta desesperadamente acobertar as provas. Mas também precisa lidar com o estranhamento que sente ao perceber que muitas pessoas meio que já sabem o que ele fez... mas não se importam, pois querem que ele continue na cidade.
Assim, ele ganha alguns aliados, especialmente o padre vivido por Jacques Develay - o melhor personagem do filme, com certeza - que se mostra cada vez mais obcecado por Jérémie. Então, ao fazer de tudo para não ser preso, Jérémie percebe que Saint-Martial se tornou uma espécie de prisão, onde ele é amado pelos carcereiros. Nesse sentido, Guiraudie faz um ótimo trabalho em apresentar a pequena cidade como um ambiente ao mesmo tempo mundano e misterioso, convidativo e ameaçador, onde até mesmo a noção de tempo começa a se perder.
A atuação de Félix Kysyl chama a atenção por retratar Jérémie como um homem totalmente levado pelos acontecimentos ao seu redor. O rosto suave e os grandes olhos azuis ajudam a construir o background do personagem, um ex-twink que teve um relacionamento problemático com um homem muito mais velho, mas que anos depois ainda não perdeu o efeito que causa nas pessoas - mesmo que não tenha controle nenhum sobre esse poder. Muito pelo contrário, ele se assusta com as coisas que são feitas em nome do amor que causa. Mas a verdade é que todo o elenco está maravilhoso. E as interações entre os personagens enquanto eles navegam nas várias reviravoltas da história causam tantos momentos de espanto quanto de risadas altas. Sério, gente, o padre é maravilhoso.
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