O cinema de Sean Baker é povoado por personagens que, mesmo vivendo à margem do que a sociedade chamaria de "moral" ou "saudável", o fazem plenamente. São pessoas mais reais que os papéis que ocupam e mais profundas que as funções que exercem. Como as travestis Sin-Dee e Alexandra, de Tangerine. Ou o ex-ator pornô Mikey, de Red Rocket. Em seu filme mais recente, o diretor nos apresenta mais uma figura desse panteão de almas alegremente perdidas, a personagem-título de Anora. Ou Ani, como ela prefere ser chamada.
Maravilhosamente interpretada por Mikey Madison - que morreu sendo incendiada tanto em Pânico quanto em Era Uma Vez Em Hollywood - Ani é uma jovem stripper que trabalha todas as noites numa boate do Brooklyn. No primeiro momento em que a vemos, ela está numa fileira de outras garotas se esfregando nuas nos colos dos clientes do local, e quando a câmera enquadra seu rosto, ela exibe um grande sorriso triunfal, que não é nada senão verdadeiro. Direta, desbocada e dominante, o estigma da imagem de sex worker não parece afetá-la negativamente. Pelo contrário, ela parece florescer nele.
Mas um dia, Ani conhece Vanya (Mark Eydelshteyn), um jovem russo filho de um oligarca que entra na boate procurando diversão. Ela decide visitá-lo em sua mansão para um programa. Em troca de quinze mil dólares, ela fica mais uma semana, posando como sua namorada. E então, eles se casam de repente. Mas a história de Cinderela de Ani tem alguns obstáculos no caminho. Os pais bilionários de Vanya e seus cúmplices armênios em Nova York fazem de tudo para anular o casamento. E é interessante notar que Ani só é vitimada de alguma forma a partir do momento que decide ceder ao sonho de uma vida um pouco mais tradicional. A alcunha de "garota de programa", por exemplo, só se torna ofensa a partir do momento que ela achou que a tinha abandonado. E a violência física nunca tinha sido algo com que ela precisou se preocupar antes. Ainda assim, ela se rebela como pode. Na medida que aumentam os absurdos a que Ani tem que se submeter, mais sua comédia romântica vai se transformando num drama caótico, uma história sobre como as pequenas e grandes agressões masculinas podem ser respondidas à altura: com muita gritaria e tapa na cara.
Ainda assim, o caos que Ani faz surgir ao tentar defender seu conto de fadas dos ataques ao seu redor também apaga um pouco da luz interior que a personagem alardeava até então. Sean Baker filma a vida inconsequente de Ani, Vanya e seus amigos como uma festa ambulante serpenteando por ambientes noturnos e frios, literalmente trazendo cor e calor. Mas no final, uma verdadeira nevasca chega. E para Anora, agora sem sua armadura, até pequenos atos de gentileza ou um beijo mais verdadeiro começam a parecer ofensivos.
Vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2024, Anora é um filme que se delicia em seus exageros, cheio de momentos pra rir alto, mas fadado a desistir de um final feliz. Como a própria vida de Ani.
Bruno Weber é formado em Rádio e TV, ama cinema e trabalha como desenhista. Suas ilustrações e tirinhas podem ser vistas nas redes sociais, como a série Cenas Deslembradas de Filmes Esquecidos, tirinhas autobiográficas e quadrinhos diversos.
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