terça-feira, 30 de setembro de 2025

Desobedientes (Wayward, EUA/Reino Unido/Canadá, 2025)

“Desobedientes”, criada por Mae Martin, é uma série ambientada em 2003, em Tall Pines Academy, um instituto para adolescentes considerados “problemáticos”. A trama combina thriller psicológico, drama adolescente e terror atmosférico para investigar como identidades resistem em espaços de controle social e vigilância. Desde o início, a série mostra que não se trata apenas de suspense, mas de um olhar em como corpos e subjetividades são moldados, reprimidos e, sobretudo, reinventados.

No centro da narrativa estão quatro protagonistas intensos: Alex Dempsey (Mae Martin), um policial trans que busca conciliar a vida em comunidade e sua relação com a esposa grávida Laura (Sarah Gordon), que por sua vez esconde um passado, Leila (Alyvia Alyn Lind), uma jovem bissexual cuja sexualidade é parte natural de sua identidade e a melhor amiga Abbie (Sydney Topliffe), adolescente marcada por traumas e instabilidade emocional, e claro, Evelyn Wade (Toni Colette), terapeuta e diretora da escola, que transita entre mentora e manipuladora sinistra. Cada um carrega fissuras próprias e, ao se encontrarem nos corredores e segredos da comunidade de Tall Pines, tornam-se espelhos e ameaças uns para os outros.

A ambientação em 2003 dá à série uma camada nostálgica poderosa, reforçada por uma trilha sonora que é praticamente um personagem à parte. Canções como “Time” do Pink Floyd, “Say It Ain’t So” do Weezer e “Free Bird” do Lynyrd Skynyrd abrem espaço para diálogos íntimos e atmosferas sufocantes, enquanto “Dear Prudence” na versão de Leslie West, “No Surprises” do Radiohead e “Help I’m Alive” do Metric intensificam sequências. Essa fusão de rock clássico, indie alternativo e pérolas melancólicas cria um contraste potente com o peso psicológico da narrativa, fazendo da música um registro afetivo do início dos anos 2000.

O espaço da Tall Pines Academy funciona como metáfora de sistemas que historicamente tentaram “corrigir” jovens queer. Ali, a disciplina rígida e os exercícios terapêuticos forçados entram em choque com a necessidade de autoaceitação e pertencimento. Evelyn Wade é figura central nesse processo, oscilando entre guia e opressora, enquanto Abbie e Leila procuram resistir ao sufocamento de uma instituição que insiste em moldar subjetividades com métodos violentos. A série sugere que o verdadeiro horror não está nos corredores escuros, mas na imposição de normalidade que tenta apagar o diverso.

O maior mérito de “Desobedientes” é a representação dos personagens queer. A identidade de Alex não se resume a um “drama moral”, mas atravessa sua vida conjugal e comunitária de maneira orgânica, ele investiga os desaparecimentos que rondam a Escola, além de dilemas inesperados no relacionamento. Leila, por sua vez, encarna uma bissexualidade, que só é concretizada numa sequência que acena para a liberdade. Até figuras periféricas, como Rabbit (Tattiawna Jones) , guardiã, e carrasca, da academia, revelam como a diversidade sexual e de gênero é tecida na trama não como exceção, mas como regra de existência.

No desfecho, “Desobedientes” se firma como mais do que um thriller juvenil. É uma reflexão sobre identidade, memória e poder, um aviso de que as tentativas de domesticar corpos e desejos sempre encontram resistência. A série inquieta porque mostra que o queer não é apenas sobrevivência, é também criação de mundos. A atração se torna uma obra que fala de dor, mas também de cura, de medo, mas também de coragem.



segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Rent Free (EUA, 2024)


“Rent Free”, de Fernando Andrés, apresenta Ben (Jacob Roberts) e Jordan (David Treviño) como dois amigos de longa data tentando sobreviver em Austin após perder o apartamento. Eles fazem um pacto para viver “rent-free” durante um ano dormindo com amigos enquanto trabalham em bicos na economia gig, planejando fugir da cidade que parece ter crescido demais para eles. Esse plano aparentemente simplório se transforma em jornada emocional marcada por amizade, desejo e ansiedade sobre quem se pretende ser.

A amizade entre esses dois jovens é retratada com delicadeza e sinceridade. Ben é impulsivo, cheio de desejos urgentes e planos à beira do improviso enquanto Jordan carrega uma calma angustiada, uma insegurança que aparece nos silêncios tanto quanto nos conflitos. “Rent Free” entende que em relacionamentos próximos as verdadeiras tensões estão nas pequenas decisões cotidianas, nos gestos de abandono, nas expectativas que divergiram com o tempo.

A estética do filme reafirma que ele é indie em alma, em orçamento e em aspiração. Fernando Andrés dirige, fotografa e edita, imprimindo um estilo quase artesanal com cores suaves e visual limpo enquanto escolhe composições de cena que favorecem a austeridade e presença, especialmente nas tomadas em casas alheias, nos sofás de amigos e nas fugas noturnas. Essas escolhas visuais reforçam que “rent-free” não é só uma ideia financeira, mas um estado emocional, uma sensação de estar temporário em qualquer lugar.


Há falhas perceptíveis mas que não anulam os méritos. Às vezes o ritmo parece hesitar demais entre cenas de comédia leve e reflexões mais densas, alguns personagens secundários ficam menos explorados e certas piadas parecem forçadas. Mesmo assim, a honestidade da experiência queer, a sensação de fragilidade econômica e o desejo de pertencimento tornam “Rent Free” algo mais que um filme bonito de amizade, o tornam impacto emocional para quem vive crises de lugar ou status.

“Rent Free” é um convite ao espelho. Ele mostra que crescer nem sempre significa grandiosidade, que amizade pode ser lar quando não há teto fixo, que identidade queer não precisa de drama explícito para afirmar seu valor. O filme não resolve tudo, mas ao contar essa história ele reivindica espaço para vozes que vivem nas bordas da estabilidade, para quem vê valor em momentos simples, improvisados, não perfeitos.

domingo, 28 de setembro de 2025

Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente (Brasil, 2025)

“Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente”, idealizada por Thiago Pimentel, criada e roteirizada por Patrícia Corso e Leonardo Moreira, dirigida por Marcelo Gomes e Carol Minêm, é mais que uma minissérie: em cinco episódios, reabre feridas com delicadeza, coragem e beleza, transformando dor, silêncio e estigma em memória viva.

A série revisita a epidemia de HIV/AIDS nos anos 80 no Brasil, mostrando como o diagnóstico era sinônimo de exclusão, medo e ostracismo, mas também revelando os espaços de resistência que surgiram na clandestinidade: o contrabando de AZT, pactos de amizade e gestos de solidariedade que se tornaram formas de sobrevivência. É ficção que pulsa como documento afetivo.


Nando (Johnny Massaro) e Léa (Bruna Linzmeyer), comissários de bordo da AirFly, e Raul (Ícaro Silva), astro magnético da Paradise, formam o eixo afetivo e político da narrativa. Em suas fragilidades, desejos e confrontos com o medo, encontramos ecos de uma geração inteira que ousava amar, cuidar e resistir, mesmo diante da morte.


Os arcos secundários ampliam a teia emocional da série: Francesca (Kika Sena), amante trans; Sonia (Rita Assemany), a viúva; Yara (Eli Ferreira), que assume responsabilidades decisivas; Antunes (Júlio Machado), piloto e futuro pai do bebê de Léa, peça-chave no contrabando do AZT; e Paka (Matheus Costa), cuja dor evidencia o peso silencioso do estigma. Participações de Sérgio Menezes, Lucas Drummond, Veronica Valenttino. Igor Fernandes e Andréia Horta adicionam novas camadas de intensidade e diversidade.


A Paradise se mantém como espaço central de resistência: boate, refúgio, lar escolhido, palco de performances memoráveis, desejo, festas e encontros que salvam. Ali, corpos se encontram e se expõem, dançando e resistindo em meio à tragédia, reafirmando a importância da comunidade LGBTQIA+ como rede de apoio e sobrevivência.


A estética da série é arrebatadora, um "Trem para as Estrelas": o Rio dos anos 80 aparece entre neon e sombra, figurinos e cenários imersos em brilho e tragédia. A trilha sonora, Marina Lima, Cazuza, Sylvester, Titãs e até Locomia, não apenas acompanha, mas pulsa como manifesto político e afetivo, atravessando dor, erotismo e resistência.


Temas como desejo, sorofobia, estigma, política do corpo, redes de apoio e denúncia social são tratados sem concessões. A série equilibra didatismo com emoção, mostrando que o passado não é distante, mas feridas que ainda reverberam e ensinam sobre coragem, empatia e solidariedade.


No desfecho, o último episódio explode, com fogos de artifício, em intensidade e segredos revelados, levando Nando e os demais personagens a confrontarem verdades evitadas, enquanto a escassez de recursos vitais cria tensão e urgência. “Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente” não é apenas produção televisiva, é memória coletiva em movimento. Em tempos de apagamentos e retrocessos, a série é convocação: para resistir, para amar, para se unir, e para nunca esquecer o peso da história, o valor da solidariedade, do cuidado e da coragem comunitária.


sexta-feira, 26 de setembro de 2025

¿Quién quiere casarse con un Astronauta? (Espanha/Uruguai/Argentina, 2024)

“¿Quién quiere casarse con un astronauta?”, de David Matamoros, é uma comédia romântica queer que parte de uma premissa aparentemente simples, uma proposta de casamento falhada em público,  para mergulhar em questões mais profundas sobre amor, estagnação e reinvenção. Ao acompanhar David (Raúl Tejón), que após ser rejeitado decide seguir em sua viagem pela Ruta 66 em busca de alguém disposto a casar com ele em dez dias, o filme revela como os tropeços mais íntimos podem se transformar em catalisadores de mudança.

O que diferencia “¿Quién quiere casarse con un astronauta?” de outras narrativas do gênero é o recorte geracional. Aqui, não temos protagonistas jovens descobrindo o primeiro amor, mas um casal mais maduro, David e Quique (Alejandro Nones), com quinze anos de relacionamento às costas. A recusa não é apenas um “não” ao pedido, mas a expressão de anos de desgaste, silêncios e expectativas não ditas.

A viagem se torna então analogia: cada quilômetro percorrido pela Ruta 66 não é apenas geográfico, mas emocional, carregado de frustrações e de um desejo de recomeço. Os encontros e situações que David atravessa pelo caminho funcionam como espelhos, expondo tanto o ridículo quanto a beleza de insistir no amor quando tudo parece perdido. O humor está sempre presente, mas nunca como caricatura, e sim como estratégia para lidar com a dor.


Outro aspecto notável de “¿Quién quiere casarse con un astronauta?” é a trilha sonora. Sem apostar em hits reconhecíveis, Matamoros cria uma fusão de estilos que acompanha a jornada de David: batidas leves que se mesclam a melodias mais contemplativas, canções com sotaque latino que trazem calor ao drama, e arranjos que soam quase confessionais.

O elenco contribui para esse tom de autenticidade. Raúl Tejón constrói um David vulnerável, teimoso, mas profundamente humano, enquanto Alejandro Nones dá a Quique uma presença paradoxal: mesmo ausente da maior parte da narrativa, sua sombra acompanha cada gesto de David. As participações de Sabrina Praga e Raúl Fernández de Pablo enriquecem a trama.

“¿Quién quiere casarse con un astronauta?” entrega uma comédia romântica leve, mas com camadas emocionais suficientes para se destacar. É um filme que aposta em representar amores queer +40 sem perder o brilho da fantasia do gênero, equilibrando riso, melancolia e esperança. 

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Love Bites (Dracula est amoureux, França, 2025)

Laméo Florès, em sua estreia em longas, constrói com “Love Bites” uma obra que ultrapassa o rótulo de romance juvenil para se afirmar como um retrato das incertezas do amor. Ambientado em uma festa de Halloween, o filme transforma máscaras, fantasias e jogos sociais em metáforas visuais para desejos escondidos, medos íntimos e verdades que resistem em emergir. É um cenário de caos festivo que reflete o turbilhão interno de personagens tentando se reconciliar com o passado e com eles mesmos.

A narrativa acompanha Liam (Lyad Smain), ainda despedaçado após o término com Anatole (Roman Freud). Em um gesto desesperado, ele invade a festa organizada pelos amigos do ex, fantasiado de Drácula, mentindo para conseguir entrar. A farsa logo se complica quando Camilia (Harper Andria) o chantageia para cuidar do irmão caçula Gabriel (Nathan Haggege), fantasiado de fantasma. Nesse espaço barulhento, entre Teletubbies dançantes, Elviras reluzentes e luzes que oscilam entre sonho e pesadelo, Liam enfrenta não apenas a presença do ex, mas a lembrança insistente dos oito meses que viveram juntos, revelados em flashbacks de ternura, desejo e brigas mal resolvidas.


A direção de Florès, que também assina o roteiro, revela uma segurança impressionante. Seu olhar mescla humor camp, delicadeza e elegância visual. O ritmo desacelerado permite ao espectador mergulhar no ambiente sufocante e sedutor da festa, embalado por uma trilha sonora que oscila entre batidas eletrônicas e melodias melancólicas. Cada detalhe visual carrega sentido.


A alma de “Love Bites” está em seu comentário sobre intimidade e medo. O verdadeiro terror não vem dos monstros que circulam pela festa, mas da dificuldade de se entregar por completo. Liam encarna a coragem de amar sem filtros, enquanto Anatole representa o peso da hesitação, sufocado por expectativas sociais e pelo receio de assumir plenamente o que sente. Entre eles, o filme expõe como inseguranças, silêncios e julgamentos moldam os caminhos do desejo.


Há uma honestidade rara no modo como Florès trata o coming-of-age queer. O filme não suaviza a dor do coração partido, mas tampouco se entrega ao melodrama. Ele encontra potência no detalhe,  um olhar que se desvia, um abraço interrompido, um beijo lembrado. Essa escolha faz com que as mordidas do amor, aqui, não sejam apenas feridas, mas também lembranças de intensidade, marcas que nos transformam mesmo quando doem.


“Love Bites” pode não ser perfeito em todos os seus movimentos, mas sua mistura de doçura, travessuras, melancolia e irreverência é irresistível. Florès entrega um debut que fica na memória como as melhores noites de juventude: confusas, caóticas, às vezes doloridas, mas sempre inesquecíveis. Um filme que ri, sofre e ama junto de seus personagens, lembrando que o amor, mesmo quando falha, nunca deixa de marcar.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

The Tiger (Itália, 2025)

“The Tiger”, dirigido por Spike Jonze e Halina Reijn para a Gucci, inaugura a nova era da marca sob Demna vindo da Balenciaga, em um curta que transborda sofisticação e inquietação. No centro da narrativa está Barbara Gucci, vivida por Demi Moore, matriarca que convida a família e um editor para celebrar seu aniversário. O cenário parece glamouroso, mas por trás da festa se abrem fissuras entre imagem e identidade, em um universo onde cada peça de roupa é personagem e cada look é uma máscara.

Barbara habita um espaço sufocado por visuais milimetricamente calculados, expectativas corporativas e o peso de um legado que a aprisiona. Sua performance pública como guardiã da marca contrasta com momentos de desespero íntimo, insegurança e a necessidade desesperada de aprovação. Esse jogo de aparências ecoa fortemente na experiência queer, onde identidade e performance se confundem, exigindo que cada gesto, cada traje, seja uma camada de sobrevivência.

Os figurinos, parte da coleção La Famiglia, funcionam como metonímia do próprio enredo. Barbara alterna entre casacos vermelhos intensos, vestidos barrocos e silhuetas imponentes que a transformam ora em contessa, ora em mãe, ora em filha exigente. Cada troca é uma encenação de poder e gênero, uma reafirmação de status diante dos olhos da família e do público. A fotografia luxuosa, os enquadramentos minuciosos, os brilhos, veludos e flores dramáticas convertem moda em narrativa, deixando claro que cada detalhe é uma construção de identidade.

O elenco reforça essa dramaturgia com peso: Demi Moore conduz a história como um fantasma de glamour em ruínas, enquanto Elliot Page, Edward Norton, Keke Palmer e Ed Harris orbitam em torno dela em uma coreografia de tensões familiares. A festa, aparentemente organizada para celebrar Barbara, se transforma em campo de batalha de olhares, silêncios e pequenas traições. A cada cena fica evidente que, embora ela tente controlar tudo, a imagem pública da família Gucci não lhe obedece mais.

“The Tiger” brilha quando revela que o luxo é também uma prisão dourada. O poder fere, o status consome, a beleza pesa. A trilha sonora acentua essa vertigem ao misturar Doechii e Chopin em um delírio sensorial que só Spike Jonze sabe criar, com imagens espelhadas, enquadramentos oníricos e um clima que flerta com o surrealismo. É nesse excesso que o filme encontra tanto sua força quanto sua fragilidade, pois às vezes se deixa enredar pelo espetáculo estético, sacrificando nuances emocionais que poderiam trazer ainda mais profundidade.

O filme ultrapassa a ideia de campanha de moda para se afirmar como ensaio sobre família, identidade e imagem em um mundo onde visibilidade e performance nunca descansam. Ao questionar quem somos sob as roupas que usamos e o quanto nossas vidas são moldadas por expectativas externas, a obra transforma o luxo em espelho. Mais do que anunciar uma coleção, revela como poder e desejo se enredam em camadas. Vestir é sempre escolher, esconder e sobreviver.


Fréwaka (Irlanda, 2024)

 

“Fréwaka”, de Aislinn Clarke, é o tipo de horror folk que revela que até as vilas mais pitorescas escondem feridas profundas. Shoo (Sophie Vavasseur) chega para cuidar de Peig (Bríd Ní Neachtain), e o que parecia apenas um trabalho logo se torna um mergulho em fantasmas folclóricos e pessoais, agravado pela gravidez de sua noiva Mila (Darya Gritsyuk). Entre realidade e superstição, a fronteira é frágil, e cada escolha carrega o peso do invisível. O filme fascina pelo modo como Clarke insere a sexualidade de Shoo sem forçar ou transformá-la em ornamento. O amor entre ela e Mila pulsa como parte natural da narrativa, mostrando que maternidade e desejo queer também cabem no terror, e que o gênero pode, sim, ser espaço para afetos dissidentes.

Visualmente, a obra é perturbadora. A fotografia fria, quase documental, constrói um clima de claustrofobia, enquanto a paisagem irlandesa se ergue como extensão dos medos internos. A estética do horror folk clássico se encontra com cortes modernos e enquadramentos precisos, lembrando o tempo todo que a ameaça não vem apenas do sobrenatural, mas também do psicológico, do social e do histórico.

As lendas dos Na Sídhe, figuras do folclore irlandês associadas ao mundo das fadas e espíritos, atravessam a narrativa como espelhos das experiências de Shoo. Clarke transforma essas crenças em metáfora para o trauma intergeracional, saúde mental, e para as pressões que recaem sobre corpos e escolhas queer, revelando como o terror coletivo se conecta ao íntimo.

As atuações elevam o filme: Sophie Vavasseur constrói uma Shoo dividida entre fragilidade e resistência, Darya Gritsyuk dá a Mila uma presença constante mesmo quando fora de quadro, e Bríd Ní Neachtain imprime em Peig uma intensidade rara, oscilando entre medo, ternura e desespero. Cada interação entre essas mulheres pulsa de humanidade, tornando o horror ainda mais cortante.

No fim, “Fréwaka” é horror folk com cérebro e coração exposto. Clarke nos lembra que monstros, espíritos e Na Sídhe são assustadores, mas nada se compara à intensidade da vida real, das relações humanas e do amor queer que insiste em florescer mesmo nos lugares mais isolados e sombrios. Um filme que assusta, emociona e atordoa!

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Griffin in Summer (EUA, 2024)

“Griffin in Summer”, escrito e dirigido por Nicholas Colia, acompanha Griffin Nafly (Everett Blunck), um garoto de 14 anos que vive em um subúrbio comum, mas nutre ambições dramáticas como dramaturgo. Quando sua mãe, Helen (Melanie Lynskey), contrata Brad (Owen Teague), um homem de 25 anos para trabalhos domésticos, a vida de Griffin e sua nova peça começam a mudar de formas inesperadas. O filme estreou no Tribeca Festival, onde ganhou prêmios de Melhor Filme dos EUA e de Melhor Roteiro, reconhecimento para essa mistura de humor, drama e descoberta pessoal.

Griffin é gay, e o filme trata sua sexualidade sem rodeios dramáticos, como parte natural de quem ele é, mas também como fonte de inquietação e desejo adolescente. A paixão que ele nutre por Brad não é tratada como algo totalmente fantasioso ou condenável, mas como parte de seu processo de vir à tona, de articular suas emoções, mesmo quando ele faz escolhas impulsivas ou erradas. A natureza da atração pela pessoa mais velha coloca em cena tensões éticas, emocionais e de identidade, que o filme encara com honestidade mais do que com julgamento. 


O arco de Griffin acontece também nas áreas menos glamourosas da adolescência: seus amigos que não entendem seus sonhos, sua mãe que luta para manter tudo funcionando, seu pai ausente que aparece como sombra nas conversas. O protagonista às vezes parece deslocado, que ele espera que a arte e o drama sejam salvadoras, mas o filme mostra com clareza que crescimento não é linear. A peça que Griffin escreve, “Regrets of Autumn”, funciona como espelho de suas inseguranças e de seu desejo.


Colia mistura com personalidade  humor constrangedor, momentos de comédia física adolescente, reflexões silenciosas e uma estética que privilegia a simplicidade. O visual é limpo, quase caseiro, intercalado com cenas que flutuam em imaginação. A trilha sonora e a cinematografia de Felipe Vara de Rey ajudam a construir esse contraste entre o mundano e o aspiracional, o quieto e o teatral.

O que “Griffin in Summer” faz de melhor é capturar o lado estranho e dolorido de crescer queer com humor, ambição e desejo, sem enlouquecer por melodrama. Everett Blunck tem desempenho magnético como Griffin, suportando ser egocêntrico, inseguro, intenso e ainda assim simpático. Brad, vivido por Owen Teague, funciona como contraste: mais velho, com menos ilusões, mas também precisando de aprovação.

“Griffin in Summer” é um filme que magoa e diverte, que mostra que o coming-of-age queer não precisa sempre de catástrofes externas, mas pode nascer do desejo contido, da arte caseira, da ambição juvenil e do erro. Colia estreia com voz própria, uma sensibilidade que abraça imperfeição, dor e riso, e cria algo que se sente próximo para quem já viveu ou vive esse momento de primeiros desejos, expectativas e inseguranças.

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Um Conto de Pescadores: A Maldição da Miringua (Un Cuento de Pescadores, México/Espanha, 2024)

“Un Cuento de Pescadores”, dirigido por Edgar Nito e escrito em parceria com Alfredo Mendoza, é uma obra de folk horror que parte da lenda da Miringua, espírito lacustre purépecha, para explorar histórias interconectadas em uma comunidade pesqueira no Lago de Pátzcuaro, en Michoacán. A ambientação real nas ilhas como Yunuén, as filmagens noturnas e a presença constante da água dão textura ao terror, ao mistério e à atmosfera opressiva do longa.

Entre os personagens, destacam-se Berenice (Alejandra Herrera) e Alicia (Daniela Momo), cujo relacionamento amoroso se desenvolve em meio ao medo e à tensão. Beijos e gestos de intimidade confirmam o lugar central dessa relação, que não apenas humaniza a narrativa como também funciona como contrapeso afetivo diante da ameaça sobrenatural. O destino das duas tem papel decisivo no desfecho do filme.

A lenda da Miringua, espírito feminino do lago que seduz pescadores para levá-los às profundezas, é o eixo mitológico que atravessa todas as histórias. Associada ao esquecimento, ao desvio e à perda de si, a figura funciona como metáfora para culpas, desejos reprimidos e traições. Ao trazer o folclore purépecha para o centro da narrativa, “Un Cuento de Pescadores” conecta tradição oral e cinema contemporâneo, renovando o gênero do horror folk com uma identidade cultural própria. E é claro, a criatura aparece, mas mesmo sem refinamento, não compromete o resultado do final.

O filme adota uma estrutura coral, em que múltiplas histórias se entrelaçam e revelam diferentes formas de enfrentar o medo, a superstição e o peso da tradição. A fotografia de Juan Pablo Ramírez explora reflexos, penumbras e o lago como superfície viva, enquanto o design de som intensifica a sensação de ameaça invisível. Maquiagem e efeitos práticos dão corpo à criatura, que se torna quase tangível, reforçando a atmosfera sombria que permeia a obra.


“Un Cuento de Pescadores” se destaca no cenário do terror mexicano por sua originalidade, resgatando o folclore local e integrando-o a personagens humanos, cheios de dilemas, desejos e arrependimentos. Ainda que alguns núcleos secundários careçam de maior desenvolvimento e o ritmo oscile em certas passagens, a força da ambientação e a densidade dos temas superam as pequenas fragilidades.

Com “Un Cuento de Pescadores”, Edgar Nito reafirma que o terror pode ser também espaço de memória, identidade e resistência. Ao unir a força ancestral da lenda da Miringua com a intensidade afetiva do romance entre Berenice e Alicia, o filme cria uma narrativa que é ao mesmo tempo local e universal, sombria e profundamente humana. Para quem busca um horror queer que emerge do coração do folclore mexicano, este é um título incontornável.


domingo, 21 de setembro de 2025

Quartas Impressões: Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente. - Ep.4 - "Vem Chegando o Verão"

“Vem chegando o Verão” é o quarto e penúltimo capítulo de “Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente”, e carrega em si tanto o peso da despedida quanto a vibração de um sopro de vida. O título evoca Marina Lima e anuncia o tom: um episódio que não se fecha na tragédia, mas abre frestas de calor e luminosidade em meio ao caos dos anos 80. O roteiro, assinado por Patrícia Corso, encontra equilíbrio entre dor e desejo, sempre com um olhar político e afetivo.

A abertura no cemitério é simbólica e devastadora, lembrando o destino comum que tantas pessoas LGBTQIA+ enfrentaram em plena epidemia. Mas o episódio recusa o luto passivo: ele transforma a perda em combustível narrativo, apontando para as contradições de uma sociedade que julgava corpos, condenava afetos e silenciava vidas. A fala da médica Dra. Joana (Hermila Guedes) ecoa como síntese de um tempo brutal: “Tem tanta morte que tá faltando até atestado de óbito”.

ALERTA DE SPOILER: ⚠️ Entre as fissuras da dor, brota também a chama do desejo. Raul (Ícaro Silva) e Nando (Johnny Massaro) engatam um romance, e a série entrega uma das sequências mais quentes até aqui, embalada pela voz inconfundível de Marina Lima. O momento é solar, sexy, mas sobretudo político: um gesto de afirmação em meio à sombra, prova de que a série não se limita à desgraça, mas também celebra a vitalidade queer.

O episódio ainda reserva espaço para crítica social afiada. As campanhas sensacionalistas do Ministério da Saúde são recriadas com ironia, expondo como o poder público escolheu o medo e o estigma em vez da informação. Em contraste, a Paradise segue como família escolhida, palco de acolhimento e de resistência, reafirmando seu papel central como coração afetivo da narrativa.

Há também espaço para intimidade e aceitação. “Mãe sempre sabe”, diz a mãe de Nando, interpretada por Carla Ribas, em uma cena comovente que contrasta com tantas histórias de rejeição. Em vez de condenar, ela acolhe o filho e reafirma seu orgulho. Essa virada familiar amplia o alcance emocional, mostrando que as redes de apoio podiam vir tanto da comunidade quanto do lar.

As tensões crescem com a batida da Polícia Federal no aeroporto, cena que mistura suspense e indignação. O carregamento de AZT, fruto de tanto risco e coragem, é jogado fora em um gesto cruel do delegado Santos (Sérgio Menezes). O drama expõe a face mais violenta do Estado, disposto a destruir vidas em nome da ordem, enquanto Yara (Eli Ferreira) assume com firmeza o posto de liderança no contrabando, em mais uma mostra da força coletiva.

Ao mesmo tempo, a AirFly revela sua hipocrisia ao demitir comissários soropositivos. Nando decide enfrentar a companhia e se expor publicamente, ato de coragem que conecta sua história pessoal à denúncia política. O casamento com Léa (Bruna Linzmeyer), que anuncia a gravidez para a empresa, sela um pacto de sobrevivência.

“Vem chegando o Verão” é um episódio comovente, que prepara o terreno para o desfecho. Entre música, desejo e dor, ele reafirma a potência de “Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente” como narrativa histórica. Ao som dos Titãs e sua irreverente “Bichos Escrotos”, a série mostra que a memória é feita tanto de lágrimas quanto de gritos de resistência.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Juice 2ª Temporada (Reino Unido, 2025)

A segunda temporada de “Juice”, criada e protagonizada por Mawaan Rizwan no papel de Jamma, amplia o universo surreal e emotivo que marcou a estreia. Desde os primeiros segundos, embalados por “Funnel of Love” na voz de Wanda Jackson, a série reafirma sua proposta de fundir humor absurdo com um olhar atento para as crises existenciais de um jovem gay britânico-paquistanês que ainda busca seu lugar no mundo. Agora, solteiro e sem emprego, Jamma se instala no sofá da amiga Winnie (Emily Lloyd-Saini), e descobre que o caminho após o fim de um relacionamento pode ser tão cômico quanto devastador.

O tom lembra a criatividade de Michel Gondry, não só pelas soluções visuais que parecem brotar de um sonho, mas também pela mistura de linguagens. O humor físico e nonsense continua sendo a espinha dorsal, mas a narrativa se permite experimentar com animação, passagens de sitcom clássico e até um flerte inesperado com o terror. Essa colagem estética dá ao espectador a sensação de estar dentro da mente de Jamma, onde os pensamentos se atropelam em ritmo caótico e poético.


O elenco mantém a força da primeira temporada, cada qual trazendo energia própria. Russell Tovey retorna como Guy, ex-namorado de Jamma, e a tensão entre eles ainda reverbera em pequenas faíscas de desejo e ressentimento. Nabhaan Rizwan interpreta Isaac, o irmão mais ajustado, que funciona como contraponto pragmático ao caos do protagonista. Shahnaz Rizwan como Farida e Jeff Mirza como Saif, os pais, reforçam tanto os laços familiares quanto os choques culturais que atravessam a narrativa.

Um dos grandes destaques está nos cenários que parecem feitos de brinquedo. Prédios em miniatura, ruas de papelão e carrinhos criam uma ambientação quase infantil que contrasta com os dilemas adultos do protagonista. Essa escolha visual dá charme e frescor à série, ao mesmo tempo em que comenta sobre a dificuldade de crescer em meio a expectativas familiares e sociais. Sequências como Jamma afundando no sofá, lembrando a icônica cena de “Trainspotting", revelam como o surrealismo serve de metáfora para a paralisia emocional e a sensação de estar sendo engolido pela própria vida.


Mesmo nos momentos mais exagerados, “Juice” nunca perde sua ligação com questões universais de afeto, pertencimento e identidade. As cenas hilárias de brunches improváveis, coreografias desajeitadas ou fantasias delirantes convivem com a sensação de que o protagonista precisa aprender a se enxergar além da performance, além da ânsia por aprovação. A série encontra graça naquilo que normalmente seria desconforto, transformando fracassos em pequenas epifanias cômicas.


A segunda temporada confirma “Juice" como uma das comédias mais originais da televisão britânica atual. Ao recusar fronteiras rígidas de gênero e estética, a série se mantém leve e experimental, mas também profundamente significativa. Mawaan Rizwan entrega um trabalho que conecta o espectador à experiência queer sem didatismo, pela via do riso, do absurdo e da imaginação sem limites. 


Smoggie Queens (Reino Unido, 2024)

“Smoggie Queens” transforma Middlesbrough em palco para uma celebração alta e cheia de falhas da vida queer, com humor, camp e identidade regional. Criada e escrita por Phil Dunning, que também interpreta Dickie (seu personagem drag/narcisista com coração), a série da BBC Three e BBC iPlayer conta com episódios de cerca de 30 minutos. A ambientação não é figurante, é personagem: teares industriais, neblina de chaminés, brasas de orgulho.

A série funciona como declaração de pertencimento, resgatando o termo “Smoggie”, insulto antes usado contra os de Middlesbrough, e transformando-o em troféu comunitário. “Família Escolhida” molda o núcleo narrativo: Dickie, Mam (Mark Benton), Lucinda (Alexandra Mardell), Sal (Patsy Lowe) e Stewart (Elijah Young) formam um grupo de amigos queer com diferentes idades, identidades e feridas, todos unidos pelo afeto, pelo absurdo e pelo desejo de viver com visibilidade.


Dickie é o epicentro do caos e humor, uma drag queen que exige amor, atenção e validação, entretando agride, tropeça, e aos poucos revela a humanidade escondida atrás da vaidade. Sua jornada se alimenta de risos e de reveses, espelhando o imperfeito de existir LGBTQIA+ no interior.


O humor de “Smoggie Queens” não se limita ao físico ou ao bizarro: referências locais, cenas de drag brunch temático, eventos comunitários absurdos, spinoffs de Titanic, comparsas travestidos em carruagem de Cinderela, tudo com pitadas de “deadpan britânico”. A estética é propositalmente viva, extravagante, mas também costurada nas imperfeições, maquiagem malfeita, figurinos exagerados, erros visuais assumidos, o que empresta originalidade, e reforça que comunidade queer também é feita de tentativa, de erro, de riso e de reparação.


Mesmo com suas piadas que nem sempre acertam o alvo, com humor que às vezes parece leve demais e com a tentação de se tornar uma caricatura vazia, “Smoggie Queens” deixa sua marca: uma série que não foge do orgulho, que apresenta a vida queer fora dos centros metropolitanos, que reconstrói identidade num cenário antes estigmatizado, que diz “aqui nós existimos, somos imperfeitos, somos hilários”.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Bijou (EUA, 1972)

 Lançado em 1972, “Bijou" é uma ousada incursão de Wakefield Poole no cinema adulto gay, desafiando sua época. Com um orçamento modesto de $22.000, Poole criou uma experiência cinematográfica que transcende o gênero pornográfico, incorporando elementos de surrealismo e estética avant-garde. A ausência de diálogos e a predominância de música clássica contribuem para uma atmosfera onírica e introspectiva.

A trama segue um operário da construção civil , vivido por Bill Harrinson, que, após testemunhar um acidente de carro, encontra um convite para o clube "Bijou" na bolsa da vítima. Ao adentrar o clube, ele é imerso em um ambiente surreal onde os desejos e fantasias se tornam realidade. Essa jornada simboliza a exploração do inconsciente e dos desejos reprimidos, refletindo as tensões sociais e pessoais da época.


Poole utiliza uma paleta de cores vibrantes e iluminação dramática para criar um ambiente visualmente impactante e provocar cenas de masturbação, pênis avantajados e penetração. A cinematografia é marcada por composições meticulosamente planejadas, com uso criativo de espelhos e fumaça, evocando uma sensação de distorção da realidade. Essa abordagem estética é reminiscente de cineastas como Kenneth Anger, que também exploraram o simbolismo e o surrealismo no cinema.


“Bijou” foi aclamado por sua inovação e sensibilidade artística, sendo considerado um marco no cinema adulto gay. Poole desafiou a ideia de que filmes pornográficos não podiam ser artisticamente valiosos, e assim como James Bidgood, com seu clássico “Pink Narcissus”, abriu caminho para uma nova abordagem no gênero.


Mais do que um simples filme erótico, “Bijou” é uma exploração sensorial, sexual e emocional dos desejos humanos. Sua fusão de erotismo, arte e simbolismo psicológico o torna uma obra atemporal que continua a influenciar cineastas e a comunidade queer.