quinta-feira, 31 de outubro de 2024

O Solar dos Prazeres Noturnos (Brasil, 2024)

Antes de lançar seu novo longa, O Labirinto dos Garotos Perdidos, Matheus Marchetti, de Verão Fantasma, (2022) traz uma abordagem única para os contos de Edgar Allan Poe, em O Solar dos Prazeres Noturnos.”Acho que o Poe talvez foi o primeiro autor por quem eu me apaixonei. Sua coletânea de contos foi um dos primeiros livros que li sozinho, e A Queda da Casa de Usher era um que particularmente achava aterrorizante. Inclusive, eu cheguei a adaptar esse conto na adolescência, num dos meus primeiros filmes caseiros.”, destaca o diretor.

O curta acompanha Rodrigo Usher(Bruno Germano), vindo de uma família de sinistros psicopatas, e que fez sucesso como ator mirim nos anos 80, atuando na série As Aventuras de Tobias. Porém, após um surto psicótico, o personagem é obrigado a se retirar. “Mas para além de adaptar somente o Usher, também incorporei elementos de outros contos do Poe - O Retrato Oval, A Máscara da Morte Vermelha, Ligeia, e um conto que eu adoro que acredito ainda não tenha sido adaptado para o cinema, Senhora Zenobia, que aparece no filme como um monólogo da Tuna Dwek”, completa Matheus.

Entrelaçado a história de Rodrigo está Vicente (Natan Cardoso), um fã que investiga a sua história enquanto é pintado pelo protagonista, numa invocação à São Sebastião. Tais momentos são mostrados com uma câmera de mão, o que contrasta com a belíssima e apurada direção de fotografia, de João Paulo Belentani. “O meu gótico é mais católico - consequentemente, o homoerotismo é mais escancarado, e São Sebastião é talvez o ápice do homoerotismo na iconografia católica (junto de Cristo, claro). É uma imagem que também encapsula, de certa forma, a justaposição de violência e tesão que permeia cada verso de Poe, é uma síntese dessa necrofilia ardente tão característica do seu trabalho.”, acrescenta Matheus.

A cinematografia é um grande destaque de O Solar dos Prazeres Noturnos, cada quadro tem algo a dizer, desde sua iluminação neon, que remetem ao giallo, à planos e movimentos elaborados que colocam os personagens num cenário atmosférico, gótico e sombrio. "Minha principal diretriz era, na verdade, tentar usar as versões anteriores da Casa de Usher como referência do que não fazer. Não no sentido de desgostar das adaptações anteriores, pelo contrário, mas a ideia era repensar essas mesmas passagens do livro de formas que eu não tinha visto antes, ou pelo menos, ao máximo que eu pudesse“, afirma o cineasta.


Assim o filme vai acontecendo em meio a delírios que são acompanhados por uma trilha pontual de Bach, Tchaikovsky e Prokofiev. O horror gráfico, assim como o homoerotismo, está presente, mas eles não surgem o tempo todo e nem gratuitamente, são usados ponderadamente para aumentar a sensação imaginária do filme.  “É puro delírio. É sonho febril. É medo e desejo se entrelaçando, se devorando. Pulsões de sexo e de morte, algo que nesse caso se manifesta em imagens homoeróticas. Acho que o Solar é mais um convite à loucura do que qualquer coisa, e a loucura nada mais é do que artifício - como uma tela pintada, um vídeo caseiro, uma dança entre fantasmas.”, define o diretor.

As figuras femininas também são algo importante. Elas são mães. São Bruxas. São Vampiras. São almas. São feiticeiras. Tuna Dwek faz um trabalho fenomenal, especialmente em uma cena em que recita calorosamente um monólogo inspirado em Senhora Zenobia. “As figuras femininas são o epicentro do horror gótico. São elas as assombradas e também as assombrações.  Madalena Usher é ainda o pilar da narrativa. Tudo acontece por causa dela. E quis ampliar ainda mais a presença feminina com um personagem que não existia no conto, a "Lady Usher", interpretado por Tuna Dwek. A figura matriarcal que está sempre lá, puxando os pauzinhos. Ela se torna uma manifestação física da casa - casa essa que é mãe dos irmãos Rodrigo e Madalena, amamentando os filhos com o sangue daqueles que morrem para alimentar a casa”.

Mas além de seu terror gótico e atmosférico, capitaneado pela bela locação, um outro personagem, O Solar dos Prazeres Noturnos também passeia por temas importantes, como saúde mental, luto e traumas, e Marchetti faz isso, em menos de 30min, com sucesso. “Eu acho que saúde mental e luto são temas que aparecem com destaque no conto e no filme. Acho que o horror contemporâneo tenta "dar um significado maior" ao gênero colocando temas como esses em primeiro plano, mas acho que a graça do gênero é algo muito mais amplo, mais ambíguo, irracional e inominável", reflete Marchetti.

Com suas máscaras, sangue, loucura, obscenidades  e interlúdios de dança, o curta também lança reflexões, não só por suas belas cenas, como na força das atuações e como elas elevam o texto. Há cenas memoráveis, que se tornam uma experiência, nesse universo onírico criado por Matheus Marchetti, mesmo que evoque seus mestres como Mario Bava, Jean Rollin e Jesús Franco.



Lowlifes (Canadá, 2024)

Lowlifes  começa como a maioria dos filmes de terror slasher — um cara sem fôlego corre pela floresta apenas para ter o pescoço cortado pela lâmina de um assassino.  Logo, somos apresentados a uma família comum, que está acampando, com o patriarca certinho Keith (Matthew Macaull) cozinhando um churrasco, a mãe amorosa Kathleen (Elyse Levesque), a adolescente rebelde Amy (Amanda Fix) e o jovem ansioso para ganhar a aprovação do pai Jeffrey (Josh Zaharia).

Mas quando dois moradores locais, Vern (Richard Harmon) e Billy (Ben Sullivan) que estão procurando por seu irmão, que podemos presumir ser o morto no início, que o filme muda o rumo e se torna imprevisível, quebrando clichês e abordando outros novos, transformando o que a princípio parecia uma história de moradores da cidade sendo aterrorizados por caipiras em algo completamente diferente.


Os locais oferecem aos campistas para passar a noite na casa de sua família no meio do nada. A casa hospeda as irmãs Savannah (Brenna Llewellyn) e Juli Ann (Cassandra Sawtell), e ainda Big Mac (Dayleigh Nelson). Mas o problema está a caminho, pois a família, num aceno à O Massacre da Serra Elétrica, pode ou não ser canibal.


Lowlifes desafia convenções  transformando o que inicialmente parecia um conto típico de pessoas da cidade sendo aterrorizadas por caipiras em algo totalmente diferente. Essa mudança introduz um novo nível de imprevisibilidade, desafiando as expectativas do público e proporcionando uma experiência narrativa emocionante.


O filme é dirigido por Tesh Guttikonda e Mitch Oliver a partir de um roteiro de Al Kapl, que brinca com as expectativas e algumas das regras dos filmes de terror do interior. Uma vez que a ação sangrenta finalmente começa, o longa se torna cruel. É gente da cidade contra família do campo usando facas, machados, arco e flecha, espingardas e até utensílios de cozinha. Os efeitos especiais sangrentos são muito bem feitos.

Amanda Fix se destaca como a filha maconheira e mal-humorada da família. Brenna Llewellyn estrela como Savannah, a lésbica dedicada à família e pianista. Essas duas garotas vão com tudo. Elas não só capturam a emoção da situação, com um princípio de romance, mas também lutam muito. 


Lowlifes supera expectativas com atuações impressionantes, reviravoltas inesperadas e ótimos efeitos práticos. Embora carregue o selo Tubi Original, frequentemente associado a resultados duvidosos, o  filme se destaca na safra do horror 2024. Sua narrativa tem um impacto inesperado, mantendo o espectador no limite enquanto navegam pelas complexidades da sobrevivência em meio a uma batalha emocionante entre cidade e campo.



quarta-feira, 30 de outubro de 2024

48ª MOSTRA DE SP - SALDO FINAL

 

Foram 23  textos, críticas e análises. Realizar a cobertura da MOSTRA DE SP, de um prisma queer, foi uma aventura que se tornou possível graças a dedicação e carinho dos colaboradores Bruno Weber e Marco Gal, que durante quase duas semanas acompanharam o evento de perto (e me aguentaram pelo Whatsapp, já que a redação é no RS), e colocaram empenho em cada filme visto e em cada palavra escrita. Nessa prova de que a união faz a força, todo o conteúdo produzido pode ser encontrado nos links abaixo:


I Saw The TV Glow (EUA, 2024)
Marcello Mio (França/Itália, 2024)
Salão de Baile (Brasil, 2024)
Anora (EUA, 2024)
Sex (Noruega, 2024)

Concerning My Daughter (Coreia do Sul, 2023)
Onda Nova (Brasil, 1983)
Sol de Inverno (Japão, 2024) Parque de Diversões (Brasil, 2024) Memórias de um Caracol (Austrália, 2024) Jean Cocteau(2024) Maria Callas (Itália/Alemanha/Chile, 2024)

Alma do Deserto (Colômbia/Brasil, 2024)

Tú me Abrasas (Argentina/Espanha, 2024)
Girl for a Day(França, 2024)
Demônios do Amanhecer(México, 2024)
Ainda Estou Aqui (Brasil/França, 2024)

A Maioria das Pessoas Morre no Dominho(2024)

Baby (Brasil/França, 2024) Tiguere (República Dominicana, 2024) Misericórdia (França, 2024) Young Hearts (Bélgica, 2024)

La Pampa(França, 2024)


E é claro que não poderia faltar um Ranking do que vimos de melhor:


Bruno Weber
1 - Anora 2 -  Misericórdia

3 - Malu

4 - Through The Graves the Wind is Blowing

5 - Oito Cartões Postais Da Utopia


Marco Gal
1- Ainda estou aqui  2- Malu

3- Rumo a uma terra desconhecida

4- Baby

5- Corações jovens


Eduardo Assumpção (EU) 1 - I Saw the TV Glow

2 - Salão de Baile

3 - Marcello Mio
4 - Onda Nova 5 - Parque de Diversões


La Pampa (França, 2024)

Por Marco Gal Exibido no Festival de Cannes, "La Pampa" é um drama sem freios sobre importância da família ao contar história de um piloto de motocross vítima de homofobia.

"La Pampa" começa com um grupo de pré-adolescentes disputando corrida em motos. Alguns deles desafiam Jojo (Amaury Foucher) a correr de moto até cruzar uma pista com carros em movimento. Ele aceita a provocação, para desespero de seu melhor amigo Willy (Sayyid El Alami), mas a preocupação não dura muito. Jojo enfrenta o perigo de cara e sai em disparada com sua moto. Ele cumpre o desafio e, o mais importante, sai ileso. Willy e Jojo comemoram.


A cena inicial é importante pois sintetiza toda a história de "La pampa". Primeiro, por contextualizar o ambiente de corridas em motocicletas. Segundo, por introduzir Jojo como alguém que se coloca em situações que arriscam sua vida. E terceiro, por representar o tema "família" através da amizade entre os dois jovens, Willy e Jojo. 


Embora comecemos o filme acompanhando o ponto de vista de Jojo, o verdadeiro protagonista é Willy, muito bem interpretado por Sayyid. Durante "La pampa", acompanhamos a relação de Willy com diferentes pessoas, principalmente com seu amigo Jojo, seu padrasto Étienne e com David, pai de Jojo. As três narrativas dialogam com a questão parental e a importância desse tipo de relação oferecer apoio e espaço de segurança aos seus membros. 


"La pampa" é uma produção francesa e o longa de estreia do diretor Antoine Chevrollier, que já dirigiu episódios de séries incluindo "Justiça por Malik Oussekine", minissérie que também tem Sayyid no elenco. Chevrollier sabe como conduzir a história e qual o ritmo e tom certos para introduzir e desenvolver os conflitos, uma vez que ele também é autor do roteiro, juntamente com Bérénice Bocquillon e Faïza Guène (que também trabalhou em "Oussekine"). Essa segurança na direção permite que Chevrollier consiga abordar temas controversos, como exposição sexual na internet e suicídio, de maneira que não soa apelativo. O tom é de crítica ao julgamento reducionista e moralista.


No fim, "La pampa" destaca-se pela mensagem sobre família, pelas reviravoltas inesperadas e pelas sequências de ação com corridas de motos. O filme foi exibido na Semana da Crítica no Festival de Cannes e ainda está sem previsão de lançamento nos cinemas brasileiros.





terça-feira, 29 de outubro de 2024

Corações Jovens (Young Hearts, Bélgica/Países Baixos, 2024)

Por Marco Gal Vencedor no Festival de Berlim, o romance juvenil "Corações jovens" encanta o público com uma história sensível sobre a descoberta do primeiro amor.

“Corações jovens” conta a história de Elias (Lou Goossens), um jovem de 13 anos, que vive uma vida tranquila com família e amigos. Um dia, novos vizinhos se mudam para a casa da frente, um pai solteiro com uma menininha e um garoto da mesma idade que Elias. Na escola, descobrimos que seu nome é Alexander (Marius De Saeger) e não demora para ele fazer amizade com os outros alunos da turma e se aproximar de Elias. Com o passar dos dias, os garotos ficam cada vez mais amigos e a relação desperta conflitos em Elias, que não sabe como lidar com seus próprios sentimentos.


"Corações jovens" é uma produção belga que teve estreia no Festival de Berlim. De lá, saiu vitorioso do prêmio "Generation KPlus", dado a melhor produção infanto-juvenil. O prêmio é merecido, pois muito da força do filme vem das ótimas atuações de Lou e Marius e da química que possuem juntos. Eles entregam atuações convincentes e o público compra cada alto e baixo da relação dos jovens. Isso é ainda mais impressionante quando destacamos que “Corações jovens” é o primeiro filme deles (essa é a estreia de Marius, Lou fez apenas um curta antes).


Os dois atores revelaram em entrevista que tinham liberdade para improvisar nos diálogos, de modo que Elias e Alex realmente falassem como jovens de 13 anos. Inclusive, o irmão de Elias é também irmão do ator na vida real. Medidas como essa, ou como a presença de um kid's coach no set, criaram uma atmosfera segura onde o ator (e elenco infantil no geral) pudesse se sentir à vontade nas filmagens e entregar a atuação mais natural possível.


Há várias sequências comoventes no filme, uma em especial acontece em uma viagem de carro com Elias e sua família. Sua mãe Nathalie (Emilie De Roo) tem uma conversa importante com o garoto e o tom da cena é de muito afeto. É a chance do público sentir-se abraçado, juntamente com Elias. Além de Emilie, destaca-se também no elenco Dirk van Dijck, como o avô de Elias.


Essa sensibilidade ao contar a história é mérito da direção de Anthony Schatteman, que trabalha há mais de uma década como diretor de curtas e séries e tem "Corações jovens" como seu primeiro longa, e do roteiro, escrito por Shatteman e Lukas Dhont, diretor e roteirista do indicado ao Oscar "Close" (2022), outro drama sensível (e belga) sobre o romance gay entre dois jovens.


Portanto, com um olhar especial para os pequenos momentos que compõem a intimidade de um jovem casal, "Corações jovens" se destaca pelos personagens reais e por um romance emocionante. Um dos destaques da 48ª Mostra de São Paulo e com estreia nos cinemas prevista para 18 de dezembro.



Misericórdia (Miséricorde, França/Espanha/Portugal, 2024)

Por Bruno Weber

Nos primeiros momentos de Misericórdia, novo filme do diretor Alain Guiraudie, acompanhamos a visão de Jérémie (Félix Kysyl) através do para-brisa de seu carro, enquanto ele dirige por estradinhas sinuosas do interior da França até chegar ao pequeno vilarejo de Saint-Martial. Há uma sequência parecida em outro filme de Guiraudie, o Na Vertical, de 2016, em que o protagonista dirige por uma cidadezinha sob os olhares nada convidativos de seus habitantes. As duas sequências têm o mesmo propósito, que é construir uma tensão sobre o local em que acompanharemos a história, indicando que há algum perigo em entrar ali. E Misericórdia entrega isso, mas é interessante perceber no decorrer da história que a ameaça em Saint-Martial vem na contramão do que se esperaria. Quase todo mundo na cidade ama Jérémie, de alguma forma. E é isso que a torna um pouco assustadora.

Após anos afastado, Jérémie volta para Saint-Martial para comparecer ao enterro de seu antigo chefe, o padeiro da cidade. Enquanto está lá, ele retoma o contato com alguns dos moradores, pessoas que foram presentes em sua infância e juventude. Como seu antigo melhor amigo Vincent (Jean-Baptiste Durand), o filho do padeiro. E também Walter (David Ayala), que era mais amigo de Vincent, mas de quem Jérémie sempre gostou. Mas, principalmente, ele forma uma nova e forte conexão com Martine (Catherine Frot), viúva do padeiro. Tanto que ela o convida para passar alguns dias na casa dela. O que ele aceita, passando a dormir no antigo quarto de Vincent.

Todos começam a se perguntar o motivo de Jérémie ainda não ter ido embora. Principalmente Vincent, que acha que ele está interessado na mãe dele. O que começa a ficar claro é que Jérémie e o padeiro foram amantes, e o fato dele e Martine terem amado e perdido o mesmo homem criou uma espécie de companheirismo entre os dois. Ao mesmo tempo, ele começa a se interessar por Walter, enquanto passeia pela cidade com um sentimento de nostalgia, cogitando até assumir o cargo de padeiro.


Porém, num momento de raiva descontrolada, Jérémie comete um assassinato. E se antes ele não queria ir embora da cidadezinha, agora ele não pode. A partir daí, o filme que se apresentava como um drama sensível começa a oscilar entre thriller policial e comédia absurda, enquanto Jérémie lida com a culpa que carrega pelo seu crime e tenta desesperadamente acobertar as provas. Mas também precisa lidar com o estranhamento que sente ao perceber que muitas pessoas meio que já sabem o que ele fez... mas não se importam, pois querem que ele continue na cidade.

Assim, ele ganha alguns aliados, especialmente o padre vivido por Jacques Develay - o melhor personagem do filme, com certeza - que se mostra cada vez mais obcecado por Jérémie. Então, ao fazer de tudo para não ser preso, Jérémie percebe que Saint-Martial se tornou uma espécie de prisão, onde ele é amado pelos carcereiros. Nesse sentido, Guiraudie faz um ótimo trabalho em apresentar a pequena cidade como um ambiente ao mesmo tempo mundano e misterioso, convidativo e ameaçador, onde até mesmo a noção de tempo começa a se perder.


A atuação de Félix Kysyl chama a atenção por retratar Jérémie como um homem totalmente levado pelos acontecimentos ao seu redor. O rosto suave e os grandes olhos azuis ajudam a construir o background do personagem, um ex-twink que teve um relacionamento problemático com um homem muito mais velho, mas que anos depois ainda não perdeu o efeito que causa nas pessoas - mesmo que não tenha controle nenhum sobre esse poder. Muito pelo contrário, ele se assusta com as coisas que são feitas em nome do amor que causa. Mas a verdade é que todo o elenco está maravilhoso. E as interações entre os personagens enquanto eles navegam nas várias reviravoltas da história causam tantos momentos de espanto quanto de risadas altas. Sério, gente, o padre é maravilhoso.


segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Tiguere (República Dominica, 2024)


Por Bruno Weber

A ideia de "machos alfa" é falsa. Simples assim. Foi inventada a partir de um estudo sobre o comportamento de matilhas de lobos, que há muito foi desacreditado  pelo próprio biólogo que o publicou originalmente. Ainda assim, um bando de homens inseguros criou essa fantasia de que eles devem se sobrepor a outros homens e, principalmente, sobre as mulheres. Talvez seja a ideia do animal selvagem, livre e dominador, que atraia tanto a esses homens. Mas o novo filme do diretor dominicano José María Cabral não fala de lobos, e sim de tigres. "Tiguere" é sobre o nome popular dado à figura do ideal masculino nas culturas da República Dominicana e do Caribe - o homem dominador, malandro, que não leva desaforo de ninguém - mas também é sobre Pablo (Carlos Fernández) e seu pai, Alberto (Manny Perez).


Alberto é um "tigre". É provavelmente o que ele diria de si mesmo, mas outros como ele concordariam. Um rico dono de fazenda e criador de cavalos, ele até se considera uma autoridade sobre o que é ser "tigre". Tanto que ele promove em sua fazenda um acampamento especial, onde famílias privilegiadas deixam seus filhos adolescentes por uma temporada. Quando sua ex-mulher leva seu filho Pablo para a fazenda durante as férias, o garoto não imagina que ele também fará parte disso. Junto de um grupo de outros jovens como ele, Pablo passa dias sofrendo com o "treinamento" do pai, que consiste em exercícios físicos perigosos ou humilhantes, o fomento de desavenças e brigas de socos.


Tudo isso enquanto a ideologia que Alberto montou é martelada na cabeça dos garotos. Frases como "o homem não entrega sua força para a mulher", "você serão os líderes desse país" e "vocês podem nascer tigres, ou podem se esforçar para serem" se misturam com versículos bíblicos, em especial o do Levítico: "Não se deite com outro homem para ter relações com ele como se fosse mulher; é abominação". É um sistema de crenças cheio de fanatismos - um machismo que rejeita tudo que não é assumidamente machista - mas também cheio de contradições. Alberto ensina a desejar e a possuir mulheres, mas não a respeitá-las. Ensina que é preciso ser forte para se defender, mas que não tem problema em atacar os mais fracos. E que é importante vencer, mas sempre como indivíduo e nunca como grupo.


José María Cabral escreveu essa história a partir de sua própria experiência num acampamento como esse. Ele conta que era uma criança introvertida e tímida. Que era inseguro e não gostava de esportes. E que nada disso se encaixava na sociedade dominicana.

Da mesma forma, os garotos de seu filme apresentam alguma sensibilidade ou vulnerabilidade que levou seus pais a mandá-los para o acampamento. Um sofre bullying por ser gordo, outro é pequeno e fraco e faz xixi na cama, outro tem a suspeita de ser homossexual. Outro é apenas negro, e Alberto quer ensiná-lo que isso não vai importar se ele for um tigre. No caso de Pablo, Alberto diz que o colocou no acampamento porque o "ama". Mas Pablo apresenta várias das características que o diretor usou para se descrever. Ele não fala muito, fica bastante tempo ouvindo música com seus fones de ouvido, tem talento para desenhar e gosta de deixar o cabelo mais comprido.

E também sente um carinho por Bruno, seu colega de acampamento, que talvez seja algo mais do que companheirismo e a vontade de fugir que ambos compartilham. Ele acaba percebendo que o amor de Alberto é uma mentira. Que na verdade, ele é tudo que seu pai odeia. Como clássico narcisista, Alberto vê seu filho não apenas como posse, mas como extensão dele. E todas as virtudes masculinas que Pablo já possui devem ser retiradas ou moldadas para ficarem mais próximas dos ideais dele. Esse é o amor que Alberto sente. E talvez seja sua maior contradição.



domingo, 27 de outubro de 2024

Baby (Brasil/França/Países Baixos, 2024)

Por Marco Gal

"Baby” de Marcelo Caetano, diretor de “Corpo elétrico”, tem muita personalidade ao contar história sobre ser livre, com um estiloso trabalho de edição e fotografia.


Exibido na Semana da Crítica no Festival de Cannes, “Baby” se passa no centro de São Paulo. Wellington (João Pedro Mariano, foto) é recém liberto da cadeia e em uma noite, acompanhando seus amigos assaltantes de celulares de desatentos no cinema pornô, Wellington conhece Ronaldo (Ricardo Teodoro), um garoto de programa. Eles esticam o encontro para o dia seguinte e logo ficam íntimos. Para os novos planos juntos, Wellington assume o codinome Baby e a partir daí o filme explora a relação dos dois e de amigos próximos, como Priscila (Ana Flavia Cavalcanti), ex-esposa de Ronaldo.


“Baby” tem protagonista ex-presidiário, mas sua mensagem sobre liberdade não é referente a uma prisão literal. É sobre a liberdade de se viver livre. Baby se relaciona com quem quer (e do modo que quer), estabelece limites em suas relações e se afasta quando eles não são respeitados. Mesmo inserido em um mundo sem recursos, que às vezes age contra ele, Baby não se rebaixa. Ele se posiciona com autonomia e não aceita ser humilhado.


João Pedro Mariano está bem no papel, mas é Ricardo Teodoro quem realmente brilha em cena, explorando todas as dimensões de Ronaldo, um personagem riquíssimo. Sua performance foi premiada como Melhor Ator Revelação em Cannes. Ana Flávia é muito carismática e também destaca-se no elenco as interpretações de Luis Bertazzo e Marcelo Várzea, ambos atuaram também em “Ainda estou aqui”.


A direção de Marcelo Caetano em “Baby” é muito segura do que quer trazer e isso garante personalidade ao filme. A Edição de Fabian Remy cria recortes e colagens da Fotografia de Joana Luz e do veterano Pedro Sotero (fotógrafo de “Bacurau”, “Aquarius” e “Meu nome é Gal”) para conduzir várias sequências interessantes, como na abertura do longa ou em algumas andanças de Wellington pela cidade. Esses momentos trazem emoções inesperadas e tornam o filme mais dinâmico.


Portanto, “Baby” é mais um belo trabalho autoral de Marcelo Caetano e firma o cineasta como um dos grandes nomes do cinema LGBTQIA+ do mundo. Por mais trabalhos do diretor!



sexta-feira, 25 de outubro de 2024

A Maioria das Pessoas Morre No Domingo (Los Domingos Mueren Más Personas, Argentina/Itália/Suíca, 2024)

Por Bruno Weber

Quando conhecemos David, personagem interpretado por Iair Said, ele está no seu pior momento. Chorando nu num quarto de hotel, ele implora que seu namorado o aceite de volta. A partir do insante que a porta de seu relacionamento se fecha - literalmente - a vida de David se torna uma sequência de erros e pequenos acidentes, que servem apenas para acentuar sua tristeza, apatia e mortalidade. Logo após o término, ele precisa voltar para Buenos Aires para o funeral de seu tio-avô. E esse retorno também marca uma oportunidade de se reconectar com sua mãe, Dora (Rita Cortese), com sua irmã, Silvia (Antonia Zegers) e com o resto de sua família judia, enquanto todos aguardam que o inevitável aconteça com seu pai, que está hospitalizado há algum tempo. E isso tudo acontecendo durante o Pessach, a "Festa da Libertação", segundo a tradição judaica.

Iair Said, que também escreve e dirige esse "A Maioria das Pessoas Morre No Domingo", buscou muito das próprias experiências para contar a história de David. Em seu segundo longa-metragem, Said mostra muito do domínio de uma comédia cheia de sutilezas que ele já havia demonstrado antes. Uma forma de humor que é permeada por momentos de tristeza contemplativa, ainda mais pelo fato dessa história ter sido inspirada pelo sentimento de perda após a morte do pai do diretor. O filme retrata essas épocas recorrentes da vida de todo mundo, em que grandes mudanças acontecem e nos deixam um pouquinho perdidos. No caso de David, pequenas humilhações e desconfortos que acontecem em sequência, e no geral não deviam ter nenhum significado, ganham importância por estarem acontecendo no meio dessa jornada de perda.


Ao mesmo tempo, cresce seu sentimento de não pertencer. Como um homossexual fora do padrão, acima do peso e tímido, e ainda por cima após voltar para sua cidade natal após anos fora, ele se vê totalmente separado do resto da comunidade. Ele tem uma atração forte por quase todos os homens que encontra, mas é desajeitado demais para ter alguma chance com alguém. E mesmo quando a oportunidade de uma transa cai em seu colo, ele se sente totalmente desconectado para fazer funcionar. Essa falta de conexão se estende para seu relacionamento com a família. Acima de tudo com sua mãe, que tenta desesperadamente se comunicar com ele.


Essa apatia do personagem se reflete nos aspectos técnicos da produção. Não apenas nas cores frias que retratam as ruas de Buenos Aires como locais monótonos e vagarosos, mas no próprio ritmo da narrativa, que infelizmente sofre um pouco com isso. É como se o filme quisesse que acompanhássemos David em seu aborrecimento e tédio. O que funcionaria, se ele fosse um protagonista um pouco mais carismático.



Ainda Estou Aqui (Brasil/França, 2024)


Por Marco Gal

Walter Salles comove com tom contido em “Ainda estou aqui”, drama de uma família que recorre à dignidade na luta contra os abusos da polícia na ditadura militar.


“Ainda estou aqui” é baseado no livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva. Uma biografia sobre sua infância no Rio de Janeiro no início dos anos 70, em pleno endurecimento da ditadura militar. Um dia, seus pais Rubens (Selton Mello) e Eunice (Fernanda Torres) recebem uma visita inesperada que transformará a vida da família em definitivo.


O que mais se destaca em “Ainda estou aqui” é o tom contido da direção de Walter Salles, que jamais deixa a tragédia dominar no registro das performances ou do que acontece em cena. Essa escolha representa fielmente a natureza daqueles personagens. Por exemplo, quando Eunice sofre truculência da polícia e mesmo assim oferece comida a eles. Quando seu algoz é quem deveria lhe proteger, sua única arma é a dignidade. Há várias sequências poderosas, como o momento que Eunice observa outras famílias se divertindo em uma sorveteria. O olhar de Fernanda Torres é arrebatador.


O elenco, aliás, é incrível, contando com os maiores nomes da nova geração do cinema brasileiro como Humberto Carrão, Maeve Jinkings, Camila Márdila, Dan Stulbach e Luis Bertazzo, em uma atuação memorável. Fernanda Montenegro faz uma participação especial.


Premiado com “Melhor Roteiro” no Festival de Veneza, “Ainda estou aqui” tem roteiro de Heitor Lorega e Murilo Hauser (que já adaptou outro romance em roteiro, “A vida invisível”). Os dois trabalharam no texto durante 7 anos e todos esses anos de dedicação ao material está refletido na boa estruturação da narrativa que, junto da edição de Affonso Gonçalves (editor de “Carol” e “Democracia em vertigem”), compõem um ritmo na duração do filme que não pesa ao espectador.


Por fim, “Ainda estou aqui” emociona como um retrato sensível de uma família, atravessando décadas. O filme estreia nos cinemas dia 7 de novembro e está bastante cotado para o Oscar principalmente nas categorias de Filme Internacional, Roteiro Adaptado e Atriz. Vamos torcer!





quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Demônios do Amanhecer (Los Demonios del Amanecer, México, 2024)


Do prolífico diretor mexicano Julián Hernández, "Demônios do amanhecer" tem problemas de ritmo, mas mantém atenção do público que torce pelo casal até o fim.

Em “Demônios do amanhecer", Orlando (Luis Vegas) trabalha como gogoboy em uma balada gay, mas seu sonho é mesmo se tornar um dançarino profissional. Um dia, pegando ônibus para a faculdade, o jovem conhece Marco (Axel Shuarma), estudante de enfermagem. Logo os dois começam a sair juntos e não demora para se tornarem namorados. No entanto, como em toda relação, os dois vão enfrentar as dificuldades de uma vida a dois, enquanto lidam com seus problemas internos.


O diretor Julián Hernández tem trabalhos que datam quatro décadas de carreira, mas tem decisões estranhas para posicionar e movimentar a câmera. As movimentações são muito marcadas e acontecem em vários momentos que não são exatamente importantes. Isso reflete mais uma preocupação puramente técnica do que utilizar a lente como ferramenta para contar a história.


Essa falta de atenção está também na fraca estruturação dos conflitos na trama, de modo que alguns momentos soam deslocados. O tema do HIV, por exemplo, entra e sai de cena de forma muito aleatória, e o público não entende qual a relação que os personagens têm com esse assunto e qual o peso dele para a história.


No entanto, o grande motivo para “Demônios do amanhecer” dar certo se deve às atuações de Vegas e Shuarma. Os dois não só desenvolvem personagens dinâmicos e reais, como também compõem um casal muito convincente, graças à química que possuem juntos. 


Portanto, ainda que o filme atinja um ritmo repetitivo de conflito (Hernández não consegue traduzir direito além de verbalizar com fala de Orlando “não sei o que se passa comigo”), o público se vê torcendo por um final feliz para o casal carismático.


Destaque para a seleção musical, que inclui Gloria Gaynor, a banda mexicana Odisseo e um cover espanhol de Elis Regina.



Crash: Estranhos Prazeres (Crash, Reino Unido/Canadá, 1996)

James Ballard (James Spader), diretor de vídeos de segurança no trânsito, após um acidente de carro descobre através da viúva do outro motorista (Holly Hunter) uma comunidade liderada por Vaughan (Elias Koteas), um homem obcecado por acidentes famosos, dedicado à busca. pelo prazer através da energia sexual gerada pelos desastres automobilísticos. Ele lidera sua esposa (Deborah Kara Unger) nessa busca que tende a extremos.

O filme de David Cronenberg é baseado no romance homônimo do autor britânico JG Ballard, cujas visões do futuro são tão incômodas que por muito tempo foi considerado  impossível de ser filmado: suas 240 páginas estão repletas de violência sexo explícito.


A versão de David Cronenberg, não é apenas um filme; é uma experiência visceral , uma descida aos espaços  mais sombrios do desejo humano, onde os limites entre prazer e dor, beleza e mutilação, tornam-se  borrados. Crash se aprofunda profundamente abaixo da superfície da moralidade convencional, explorando a intersecção perturbadora de tecnologia, morte e uma forma singular de despertar sexual.


A exploração inflexível da parafilia, especificamente da sinforofilia, é um dos seus aspectos mais chocantes e atraentes. Cronenberg não se intimida com a representação gráfica da excitação decorrente de acidentes de carro, forçando o público a confrontar a realidade perturbadora desses desejos.



Os personagens, se envolvem em uma série de encontros cada vez mais perigosos e incômodos, confundindo as linhas entre prazer e dor, consentimento e exploração. Eles procuram acidentes, recriam acidentes famosos e até mesmo infligem ferimentos a si mesmos, tudo em busca de uma experiência sexual intensa.

Crash também se aprofunda no body horror, uma marca registrada da filmografia de Cronenberg. O filme encontra uma beleza perversa na carne mutilada e nos ossos quebrados, justapondo o fascínio da forma humana com a realidade grotesca de sua vulnerabilidade. Cicatrizes se tornam símbolos eróticos. O filme desafia noções convencionais de beleza, sugerindo que o desejo pode ser encontrado nos lugares mais inesperados e até repulsivos.


O longa não oferece respostas fáceis ou julgamentos morais, em vez disso, ele apresenta um retrato severo e inquietante do desejo humano em sua forma mais extrema e não convencional. Ele nos força a questionar a natureza do consentimento, os limites da autonomia pessoal e até onde os indivíduos irão na busca pelo prazer.