segunda-feira, 10 de março de 2025

O Melhor Amigo (Brasil, 2024)

Allan Deberton, após o sucesso de “Pacarrete (2019)”, retorna com “O Melhor Amigo” , um longa que expande o curta homônimo de 2013, estrelado por Jesuíta Barbosa. O que era um esboço de 17 minutos sobre um quase-romance ganha agora cores vibrantes e um tom festivo, centrado no reencontro entre Lucas (Vinícius Teixeira) e Felipe (Gabriel Fuentes), em Canoa Quebrada, no Ceará. Deberton injeta humor e leveza ao roteiro, abordando com inteligência questões da vida cotidiana gay, como a busca por amor, as tensões de relacionamentos e a celebração da identidade queer, sem jamais cair no didatismo ou em clichês. Em entrevista ao CINEMATOGRAFIA QUEER, Allan destaca a importância desse tom: “Recebi muita mensagem de pessoas da comunidade LGBT falando que estão muito felizes de ver um filme que fala sobre essas vivências de uma forma solar, feliz, divertida e romântica".

O grande trunfo de "O Melhor Amigo" está em suas cenas musicais, que não apenas pontuam a narrativa, mas se entrelaçam a ela como uma espécie de celebração espontânea da vida. São momentos que elevam o filme a um “musical tropical”, com um repertório que vai de Xuxa, passando por hits como “Escrito nas Estrelas”, “Geme Geme” e “Flashdance”, e um momento muito especial ao som de “Amante Profissional”. Allan revela o processo por trás disso: “As cenas viraram músicas inteiras e a gente viu: ‘Nossa, isso aqui é um musical e pode ser o nosso 'Mamma Mia!' do Nordeste.’ Allan encontrou nas músicas dos anos 80 e 90 um eco perfeito para as emoções da trama.


Vinícius Teixeira, que interpreta Lucas, falou sobre a preparação: “Passamos um mês em Fortaleza, num processo complexo, preparando cenas, músicas e coreografias para chegar nos corpos”. Cada escolha é um lacre, a música reflete com, nostalgia as emoções dos personagens e te leva ao passado. A trilha, aliada à coreografia despretensiosa, dá ao filme uma energia de férias que é impossível não sentir.


Outro destaque é a descentralização do eixo Rio-São Paulo, uma escolha que enriquece o cinema brasileiro ao colocar Canoa Quebrada como protagonista visual. Allan reforça essa intenção: “Para mim, nunca teve dúvidas de que 'O Melhor Amigo' seria na praia de Canoa Quebrada, porque Canoa foi desde muito tempo um paraíso". Ele ainda fala sobre o empoderamento regional: “É uma alegria filmar no Nordeste e contar histórias que são com personagens do Nordeste também, e com equipe do Nordeste, num lugar de empoderamento.”




As imagens de Canoa Quebrada gritam "Nordeste" e te puxam para o calor da região. Esse pano de fundo solar contrasta perfeitamente com os conflitos internos de Lucas, um arquiteto em crise com o namorado Martin (Léo Bahia). A participação de drags locais, como Deydianne Piaf (Dênis Lacerda) e Mulher Barbada (Rodrigo Ferrera), reforça essa autenticidade regional, trazendo a efervescência da cena queer de Fortaleza e arredores para as telas com um brilho genuíno. Allan comenta a escolha estética: “Uma vez que personagens trans e drags faziam parte da história, eu trouxe para essa energia estética do filme um lugar de divindade queer, de a gente ver que esses corpos performam no lugar celebrativo, no lugar expansivo, num lugar de exuberância, uma coisa meio Madonna, meio gigante.”


A fotografia de "O Melhor Amigo", assinada por Ivo Lopes Araújo, é um espetáculo à parte. A luz solar intensa e as cores vibrantes do Ceará são exploradas com sensibilidade, realçando a beleza natural de Canoa Quebrada. As dunas, falésias e o mar cristalino são filmados com planos abertos e composições que convidam o espectador a mergulhar na paisagem, criando uma atmosfera de paraíso tropical.


E, claro, há as presenças icônicas que enriquecem o tom brega-chique do longa. Gretchen, interpretando a si mesma, surge como a rainha do rebolado em uma boate, entoando “Melô do Piripipi” e “Conga Conga”. Allan detalha a escolha: “A Gretchen estava desde o começo dos desejos iniciais do roteiro. Quando ele foi se corporificando com essa estética, com essas músicas, aí teve que ter a Gretchen, ela tem que ser ela mesma”. Sua participação é mais que um cameo: é um selo de celebração pop que dialoga com a proposta do filme. Já Mateus Carrieri, galã que povoou o imaginário gay dos anos 90, reaparece no cinema como José, um hóspede que, ao lado do namorado argentino Juan (Diego Montez), procura marmita pro casal, em cenas que misturam humor safado e ternura. 

"O Melhor Amigo" não reinventa o gênero musical nem o romance queer, mas também não pretende isso. Sua força está na simplicidade assumida: um filme que quer ser gostoso, colorido e verdadeiro, como um fim de semana na praia. Deberton parece interessado em entregar leveza e afeto. É uma carta de amor ao Ceará, à diversidade e à memória afetiva dos anos 80, embalada por um elenco carismático e uma trilha que fica na cabeça. Para quem busca ir ao cinema e sair com vontade de dançar. Um close cearense, que faz amar, cantar rir e vibrar!



domingo, 9 de março de 2025

2020: O Ano que Acendeu a Chama Queer

2020 foi o pontapé do CINEMATOGRAFIA QUEER, um ano pandêmico que me jogou no cinema como refúgio e resistência. Entre Almodóvar, ballroom e horrores queer, eu criei um olhar afiado pro que pulsa na margem — aqui começou o fogo!


Março: O Big Bang em Cores e Dor

Março acendeu tudo com "Dor e Glória", de Pedro Almodóvar, trazendo Antonio Banderas como um eco vulnerável do diretor que me pegou pelo coração e me impulsionou a começar o projeto. "Rocketman", de Dexter Fletcher, voou alto com Taron Egerton vivendo Elton John em cores vibrantes. Revisei "Má Educação", de Pedro Almodóvar, e "Madame Satã", de Karim Aïnouz, com Lázaro Ramos como o rei da Lapa em chamas. "AJ and the Queen", com RuPaul, me levou numa road trip drag cheia de alma, e "Paris is Burning", de Jennie Livingston, consagrou o ballroom como hino eterno de resiliência. Foi o big bang para expandir e compartilhar o meu olhar queer, um start que misturou dor e brilho!

Abril: Sexo, Flores e o Pulsar das Margens

Abril explodiu com "Atrás da Estante", de Karen Harley, um doc sobre a Circus of Books, santuário queer de Los Angeles que me fascinou. "La Casa de las Flores: 3ª Temporada", de Manolo Caro, fechou com ironia e temas trans. A revisão de "Pose: 1ª Temporada", de Ryan Murphy, me fez vibrar na Nova York de 1987 com Blanca (MJ Rodriguez) reinando, e "Tudo Sobre Minha Mãe", de Pedro Almodóvar, partiu meu coração (mais uma vez) com Cecilia Roth como Manuela. Foi um mês que pulsou nas bordas, cheio de sexo, flores e vida!

Maio: Resistência Trans e Sonhos de Tela

Maio me trouxe de novo "Uma Mulher Fantástica", de Sebastián Lelio, com Daniela Vega brilhando como Marina, uma trans em luta e sempre me faz chorar junto. "Hollywood", de Ryan Murphy, sonhou uma era de ouro mais justa, entre garotos de programa e rebeldia, e eu me joguei nesse delírio revisionista. Foi um mês de resistência e telas que gritam inclusão!


Junho: Transgeneridade, Amor e Glamour Pandêmico

Junho refletiu com "Revelação", de Sam Feder, mapeando a transgeneridade no cinema e me fazendo repensar tudo. "Carol", de Todd Haynes, tocou fundo com Cate Blanchett e Rooney Mara num amor que corta a alma. "Legendary" (HBO) reacendeu os ballrooms com Leiomy Maldonado e Law Roach servindo 10 Across the Board, e "RuPaul’s Drag Race: Temporada 12" me salvou da pandemia com Jaida Essence Hall e um rusical sobre Madonna que eu amei. Foi glamour e luta em tempos de máscara!

Julho: Corpos Nus e Lendas Brilhantes

Julho expôs "Hombres de Piel Dura", de José Celestino Campusano, com Ariel em sexo bruto e abusos que me chocaram pela crueza. "Wig", de Chris Moukarbel, celebrou Lady Bunny e o Wigstock com plumas e história, enquanto "Minha Vida com Liberace", de Steven Soderbergh, trouxe Michael Douglas e Matt Damon num romance trágico que me fisgou. "Ligue Djá! O Lendário Walter Mercado", de Cristina Costantini e Kareem Tabsch, me levou de volta às antigas tardes do SBT com o astrólogo andrógino que é puro ícone. Corpos nus e lendas que brilham!

Agosto: Amores Viscerais e Vozes da Margem

Agosto incendiou com "Traídos pelo Desejo", de Neil Jordan, um amor visceral que me marcou. "Carta para Além dos Muros", de André Canto, deu esperança e didatismo sobre o HIV que eu respeitei. "Lorna Washington: Sobrevivendo a Supostas Perdas", de Rian Córdova e Leonardo Menezes, me levou ao Rio com uma transformista ativista que eu já conhecia o legado, e "Greta", de Armando Praça, surpreendeu com Marco Nanini. Voltando aos clássicos, "Watermelon Woman", de Cheryl Dunye, misturou racismo e empoderamento feminino num marco do new queer cinema, e "Parting Glances", de Bill Sherwood, foi pioneiro em abordar AIDS, em 1986. Foi visceral e marginal, do jeito que eu amo!

Setembro: Almodóvar e Waters, Opostos que Queimam

Setembro foi o mês que a página começou a postar mais intensamente graças à sua incursão no Instagram e outras redes e mergulhou no meu "Top 10 Pedro Almodóvar", com "Tudo Sobre Minha Mãe" como obra-prima, Cecilia Roth e Agrado (Antonia San Juan) me dilacerando. Também devorei John Waters, de "Pink Flamingos" a "Multiple Maniacs", com Divine reinando no trash queer como rainha absoluta. Também teve "As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant" e "Querelle" para começar uma jornada incrível por Fassbinder . Marcante nesse mês de post diários também foi o underground "Inferninho", Pedro Diógenes e Guto Parente. Foi um choque de opostos que queimou minha retina!

Outubro: Horrores Queer com Sangue e Glitter

No meu primeiro abraço ao Halloween teve "The Rocky Horror Picture Show", de Jim Sharman, me levando pra uma sessão da meia-noite em 1975 que eu vivi na alma. "Party Monster", de Fenton Bailey e Randy Barbato, foi puro close club kid, e "Monster: Desejo Assassino", de Patty Jenkins, partiu meu coração. Minha lista "13 Filmes de Terror LGBTQIA+" trouxe "Vestida pra Matar", de Brian De Palma, e "A Pele que Habito", de Pedro Almodóvar (ele de novo). Eu abri a mente para Gregg Araki com "Mistérios da Carne", e fiz uma revisão super cantarolando "Hedwig", do John Cameron Mitchell. Também imergi no New Queer Cinema, de Gus Van Sant, com "Garotos de Programa". "Alice Júnior", de Gil Baroni, exorcizou o Halloween com uma trans pop que roubou a cena. Sangue e glitter na veia!

Novembro: Mix Brasil, Amores que Gritam

Novembro pulsou com o Mix Brasil online. "As Mil e Uma", de Clarissa Navas, abriu o festival num amor marginal que me pegou, "Valentina", de Cássio Pereira dos Santos, brilhou com Thiessa Woinbackk. "Os Fortes", de Omar Zuñiga, foi um romance chileno triste e lindo. Teve os quentes "Vento Seco", de Daniel Nolasco e "Saint Narcisse", de Bruce LaBruce, Assisti aos clássicos "Alucarda", de Juan López Moctezuma e "Orlando", de Sally Potter, com Tilda Swinton. E novembro também me trouxe VENENO, a série icônica que conta a história de Cristina Ortiza, La Veneno. Amores que gritam alto!


Dezembro: Tops, Triângulos e um Natal Queer

Dezembro listou meu "Top 8 Séries LGBTQIA+ 2020", elegendo "Veneno", de Javier Calvo e Javier Ambrossi, como um hino de identidade trans, com "Ratched" e "Hollywood" (ambas de Ryan Murphy) brilhando também. Meu primeiro "Top 10 Filmes LGBTQIA+ 2020" coroou "Valentina", mas "Retrato de uma Jovem em Chamas", de Céline Sciamma, e "Ammonite", de Francis Lee, me pegaram forte no drama sáfico de época. Fui para a Normândia com "Verão de 85", de François Ozon. Maratonei Xavier Dolan, de "Amores Imaginários" a "Laurence Anyways", com seus triângulos e linguagem pop me hipnotizando. "Alguém Avisa", de Clea Duvall, garantiu um Natal gay fofinho. Um final para se livrar do ano tenso e pandemônico que foi 2020!

Toque Final:

2020 foi mais do que um ano perdido – foi o palco onde a chama queer acendeu minha alma para conhecer e imergir em narrativas que destacam a comunidade LGBTQIA+. Foi a chama que fez renascer das cinzas. Das telas de Almodóvar aos catwalks do ballroom, cada frame foi uma luta, um grito, um brilho.


sexta-feira, 7 de março de 2025

Studio One Forever


Studio One Forever, dirigido por Marc Saltarelli, é uma viagem no tempo que resgata a era dourada das pistas de dança, transportando-nos aos anos 70 com a pulsação vibrante do Studio One, uma das boates mais icônicas de Los Angeles. Lançado como um documentário que celebra a história queer, o filme captura a essência de uma época em que torsos desnudos brilhavam sob luzes disco, e o suor no ar era um símbolo de liberdade e desejo. Com imagens de arquivo restauradas e uma narrativa que mistura nostalgia e reflexão, Saltarelli constrói um retrato afetuoso de um espaço que foi muito além de uma balada: um refúgio revolucionário para a comunidade LGBTQ+ em tempos de repressão.

O filme brilha ao destacar as divas setentistas que animavam as noites do Studio One, com vozes poderosas que ecoavam pelas pistas e definiram o som da era Disco. Os depoimentos de frequentadores e artistas revelam histórias de luta, amor e resiliência, pintando um quadro vivo da vida queer antes da AIDS devastar a comunidade. Esses relatos, combinados com imagens de corpos dançando livres, oferecem um olhar raro sobre a identidade e a alegria que floresciam naquele espaço, mesmo sob o peso de uma sociedade hostil. Saltarelli equilibra esses momentos de celebração com a gravidade histórica, mostrando como o Studio One foi um ponto de encontro que desafiou normas e pavimentou caminhos para a luta por direitos.


A estética visual do documentário é um deleite nostálgico, com cores saturadas e texturas que remetem às fitas VHS e aos cenários iluminados por luzes estroboscópicas. Essa escolha reforça o valor histórico do filme, preservando a memória de uma era que moldou a cultura queer contemporânea. No entanto, a narrativa às vezes se perde em um ritmo desigual, com momentos que parecem mais um tributo genérico do que uma exploração profunda, deixando a sensação de que poderia ir além na análise dos impactos sociais.


Ainda assim, Studio One Forever conquista pelo seu coração. É um registro essencial que honra os pioneiros da pista, cujos torsos desnudos e passos de dança foram atos de resistência. Para quem busca entender as raízes da comunidade LGBTQ+ ou simplesmente reviver o brilho da era Disco, o filme oferece um convite à memória e à celebração. Uma obra que, apesar de suas limitações, brilha como um espelho do passado, refletindo a força de um movimento que continua a inspirar.


quinta-feira, 6 de março de 2025

5 ANOS DE CINEMATOGRAFIA QUEER: ARTE E VOZ

Há cinco anos, o Cinematografia Queer nasceu com uma missão ousada: iluminar as telas com histórias que ecoam a diversidade da experiência LGBTQIA+. O que começou como um espaço para dicas de filmes e séries se transformou em um movimento — uma celebração da sétima arte que dá voz, rosto e alma às narrativas queer.

O projeto surgiu quando assisti a Dor e Glória, de Pedro Almodóvar. O momento fraturado de que eu vinha mudou; a urgência de escrever sobre esse filme, com suas memórias cruas, sua celebração da sexualidade e sua paixão pelo cinema, acendeu uma chama criativa que marcou meu renascimento, não apenas como espectador, mas como jornalista e criador. Escrever sobre ele não foi um simples exercício de crítica ou análise; foi o pontapé inicial para o nascimento do "Cinematografia Queer". Hoje, ao celebrar esse acontecimento, vejo que cada texto, cada filme discutido, cada narrativa compartilhada carrega a essência de uma jornada que transforma desafios em conexões, celebrando não só a existência do projeto, mas a resiliência de todos que, como eu, encontram na arte queer um lugar para existir, resistir e brilhar.

São 5 anos de análises apaixonadas, threads que educam e provocam, e recomendações que vão de clássicos escondidos a lançamentos que merecem holofote. Cada post foi um frame de resistência, um convite para olhar além do óbvio e enxergar o cinema como espelho da nossa humanidade. Do humor afiado às reflexões profundas, construí, através de diversas plataformas, uma comunidade que não só assiste, mas debate, aprende e transforma.


No Brasil, onde a arte ainda luta por espaço e inclusão, esses 5 anos são mais que um aniversário, são um marco. Obrigado a quem caminha comigo nessa sessão contínua de cinema e vida. Que venham mais anos, mais histórias e mais baphos na nossa tela!


La Belle de Gaza (França, 2024)

 

"La Belle de Gaza", dirigido por Yolande Zauberman, encerra sua "Trilogia da Noite", iniciada com "Would You Have Sex with an Arab?" (2011) e "M" (2018). O documentário explora a vida de mulheres trans palestinas que, fugindo de ameaças em Gaza, buscam refúgio em Tel Aviv. Com um olhar poético, Zauberman retrata resistência e identidade, mas nem sempre equilibra sua busca pessoal com a profundidade do tema.

O filme parte de uma lenda: uma jovem trans teria cruzado de Gaza a Tel Aviv por liberdade. Chamada "A Bela de Gaza", ela guia uma jornada noturna por Hatnufa, bairro marginal onde mulheres trans palestinas sobrevivem como trabalhadoras sexuais. Filmado com câmera handheld, o registro em tons escuros reflete a marginalidade dessas vidas em uma sociedade dividida.


Zauberman estrutura a obra em encontros com figuras como Talleen Abu Hanna, Miss Trans Israel 2016, e Israela, uma veterana trans. Os depoimentos revelam rejeição, violência e orgulho, formando o coração do filme. Porém, a busca obsessiva pela "Bela" mítica fragmenta a narrativa, deixando lacunas para quem desconhece o contexto geopolítico.


A fotografia belíssima, com sombras e tons dourados, às vezes suaviza demais a brutalidade enfrentada por essas mulheres – violência, precariedade, clientes perigosos. Isso flerta com o voyeurismo, ainda que sem sensacionalismo. A falta de foco em estruturas políticas, como a ocupação israelense, também limita a análise.


Apesar disso, o filme brilha ao destacar a força de suas protagonistas. Elas riem, dançam e afirmam sua existência, transcendendo adversidades. Momentos como uma mulher na praia ou o diálogo final sugerem esperança e reconciliação, capturando a luz que Zauberman busca nas trevas.


"La Belle de Gaza" é belo e incompleto. Menos impactante que "M", ainda é um testemunho valioso da resiliência humana. Suas imperfeições não apagam a coragem das personagens nem a delicadeza de seus retratos, fazendo-o ressoar como um convite a ouvir vozes silenciadas.


quarta-feira, 5 de março de 2025

Carvão (Brasil/Argentina, 2022)

Carvão, estreia em longa-metragem da cineasta Carolina Markowicz, é uma obra que equilibra com precisão o humor ácido, a sátira social e o terror psicológico, oferecendo um olhar cortante sobre a moralidade flexível de uma família rural no interior de São Paulo. Escrito e dirigido por Markowicz, o filme solidifica sua voz autoral, já celebrada em curtas como O Órfão, vencedor da Queer Palm em Cannes 2018, e explora, de forma sutil mas impactante, aspectos queer que desafiam normas rígidas de um contexto conservador.

A narrativa segue Irene (Maeve Jinkings), uma mulher calejada pela vida, que administra uma carvoaria com o marido Jairo (Rômulo Braga) e o filho pequeno Jean (Jean de Almeida Costa). A rotina modesta da família, marcada pelo cuidado com o avô acamado Firmino (Benedito Alves), é sacudida por uma proposta sinistra de uma enfermeira suspeita (Aline Marta): eliminar o idoso para abrigar Miguel (César Bordón), um traficante argentino fugitivo disposto a pagar bem pelo esconderijo. 


O que se desenrola é uma trama que entrelaça o absurdo ao cotidiano, desnudando as contradições de uma comunidade moldada por hipocrisia religiosa e interesses mesquinhos.


A estética de Carvão, capturada pela fotografia de Pepe Mendes, sufoca: a poeira asfixiante da carvoaria e os tons terrosos do interior paulista criam uma atmosfera entre o bucólico e o opressivo. A edição de Lautaro Colace, com seu ritmo intencionalmente pausado, amplifica o desconforto, como o calor persistente de um forno que nunca se apaga. 



O viés queer do filme, embora não se apresente como uma narrativa convencional de identidade ou romance, brota nas entrelinhas, especialmente na construção de Jairo. Markowicz sugere, com uma provocação sutil, que o marido de Irene carrega desejos reprimidos que colidem com a fachada de masculinidade rústica que ele exibe. Um olhar trocado entre Jairo e Miguel, carregado de uma tensão ambígua, é um exemplo marcante — um instante que não se concretiza em ação, mas que planta sementes de inquietação.


Esse subtexto queer ecoa a filmografia anterior e posterior de Markowicz, como O Órfão e Pedágio. Em Carvão, o tema é mais velado, entrelaçado à crítica ampla da hipocrisia social. A possível homossexualidade reprimida de Jairo funciona como metáfora para os segredos que corroem a família e a comunidade. Tal como o carvão do título, esses desejos são combustíveis ocultos, prontos para incendiar se expostos.


Maeve Jinkings brilha como Irene, uma matriarca que transita entre pragmatismo e desespero com uma intensidade palpável. Jean de Almeida Costa, em sua estreia, encanta com uma mistura de inocência e astúcia, enquanto César Bordón confere a Miguel uma aura enigmática que intensifica a sensação de ameaça. Rômulo Braga, como Jairo, opta por uma atuação contida, deixando o público especular sobre as camadas mais profundas de seu personagem.


Carvão é um triunfo de Carolina Markowicz como uma voz única no cinema brasileiro. Seu olhar queer, ainda que submerso, integra-se a uma crítica mordaz da performance social, da religiosidade oportunista e da sobrevivência em um país doente. Para o espectador, é um convite a enfrentar o desconforto  e a perceber que, sob as cinzas da tradição, arde um fogo que resiste a se apagar.



terça-feira, 4 de março de 2025

Langue étrangère (França/Alemanha/Bélgica, 2024)

"Langue Étrangère", dirigido por Claire Burger, é um coming-of-age que se destaca por sua abordagem sensível e multifacetada, centrando-se na relação entre Fanny (Lilith Grasmug), uma adolescente francesa tímida, e Lena (Josefa Heinsius), uma jovem alemã de espírito rebelde, conectadas por um intercâmbio linguístico. 

O filme usa a barreira da língua como metáfora para explorar as distâncias emocionais e culturais entre as protagonistas, criando uma narrativa que transita entre o intimismo de suas descobertas pessoais e o peso de um contexto social mais amplo. Claire Burger demonstra habilidade ao entrelaçar o despertar amoroso das duas com questões de identidade e pertencimento, situando a trama em um mundo pós-pandêmico que reverberam com as incertezas da juventude atual.


As atuações de Grasmug e Heinsius são o coração pulsante da obra. A química entre elas é palpável, construída em silêncios carregados e gestos sutis que revelam tanto a vulnerabilidade quanto a força de suas personagens. Fanny, insegura e introspectiva, encontra em Lena — confiante e impulsiva — um espelho para suas próprias inquietudes, enquanto Lena vê em Fanny uma chance de confrontar suas fragilidades disfarçadas de ousadia. Essa dinâmica é capturada com maestria pela câmera de Burger.


A direção de Claire Burger brilha ao equilibrar realismo e poesia visual. Cenas como o encontro no hot tub ou os momentos de convivência nas ruas de Leipzig e Estrasburgo são carregadas de uma sensualidade contida, enquanto as manifestações de rua injetam um tom político que expande a categorização do filme. 


A trilha sonora, composta por Rebeka Warrior, com suas batidas techno e ecos góticos, amplifica a energia inquieta das protagonistas, funcionando como um reflexo sonoro de suas emoções em ebulição. É um trabalho que não teme explorar o desejo adolescente como força transformadora, mas também como terreno de conflitos.


No entanto, o filme tropeça em sua ambição narrativa na segunda metade. O que começa como uma história íntima sobre conexão e autodescoberta ganha contornos mais amplos ao introduzir temas como ativismo radical e tensões geracionais, especialmente na relação de Lena com sua mãe, uma ex-ativista. Embora essas camadas enriqueçam o contexto, elas desviam o foco do romance central, diluindo a força emocional que sustentava o enredo inicial.


segunda-feira, 3 de março de 2025

Sad Jokes (Alemanha, 2024)

O cinema alemão contemporâneo ganha um sopro de frescor com Sad Jokes, segundo longa-metragem de Fabian Stumm, que assume simultaneamente os papéis de diretor, roteirista e protagonista. Lançado em 2024, o filme estreou no Filmfest München, onde Stumm foi agraciado com o prêmio de Melhor Diretor na seção Novo Cinema Alemão, antes de seguir para o prestigiado Festival de Toronto. Essa trajetória reflete o impacto imediato de uma obra que combina humor absurdo, melancolia sutil e uma reflexão profunda sobre arte, família e resistência, equilibrando-se habilmente entre a comédia e o drama.

A narrativa acompanha Joseph (interpretado pelo próprio Stumm), um cineasta gay que enfrenta os desafios de desenvolver seu próximo filme enquanto lida com as demandas da paternidade compartilhada de Pino (Justus Meyer), seu filho pequeno, ao lado de Sonya (Haley Louise Jones), sua melhor amiga. A trama ganha densidade quando Sonya, lutando contra uma depressão severa, é internada, deixando Joseph como principal cuidador do menino. Esse ponto de partida, que poderia facilmente descambar para o melodrama, é tratado por Stumm com uma leveza desconcertante, entremeada por momentos de humor físico e diálogos que transitam entre o trivial e o existencial.


Sad Jokes se estrutura como uma colagem de vinhetas, uma escolha estilística que reflete a fragmentação das vidas de seus personagens. A abertura, com uma sequência de pessoas contando piadas tristes ao som de risadas enlatadas, estabelece o tom agridoce que permeia o filme. Stumm não busca uma linearidade convencional, mas sim capturar a essência de instantes, sejam eles cômicos, como Joseph preso em um acidente com um vendedor automático, ou devastadores, como o monólogo de Sonya sobre uma memória de terapia. Essa abordagem, embora por vezes desorientadora, confere à obra uma qualidade quase musical, que ecoa as influências de cineastas como Éric Rohmer e Woody Allen, referências explícitas no filme.


A direção de Stumm é marcada por uma estética contida e precisa, com enquadramentos estáticos e uma iluminação natural que contrastam com a volatilidade emocional dos personagens. A fotografia de Michael Bennett, colaborador recorrente do diretor, cria visuais que parecem abraçar tanto a calma quanto o caos interno, um paradoxo que reflete a dualidade central da obra: a coexistência de alegria e dor. 




No centro do filme, a química entre Stumm e Jones é um dos pilares que sustentam a narrativa. Joseph, com sua mistura de vulnerabilidade e determinação, é um protagonista que não domina as cenas de forma convencional, mas as atravessa com uma suavidade quase magnética. Sonya, por sua vez, traz uma intensidade crua, especialmente nas sequências que revelam os abismos de sua depressão. A relação entre os dois, baseada em amizade e parentalidade não convencional, é retratada com uma naturalidade rara, desafiando modelos tradicionais de família sem jamais soar didática.


O elenco de apoio também merece destaque. Ulrica Flach, em sua estreia no cinema, entrega um momento memorável como Elin, a professora de desenho de Joseph, cujo monólogo inspirado em Joana D’Arc é um dos pontos altos do filme, uma explosão de emoção que contrasta com a contenção geral da obra. Jonas Dassler, como o ex-namorado de Joseph, e Godehard Giese, como um produtor excêntrico, adicionam camadas de humor e tensão, enquanto o jovem Justus Meyer, filho de Stumm na vida real, carrega uma autenticidade desarmante às cenas familiares.


O que eleva o filme acima de suas imperfeições é sua capacidade de encontrar beleza nas fraturas do cotidiano. Stumm explora a ideia de "perseverança", não como um triunfo heroico, mas como um ato quieto de continuar em meio ao caos. Há uma sinceridade palpável em sua abordagem, que rejeita tanto o sentimentalismo fácil quanto a frieza cínica, optando por um equilíbrio delicado.


Sad Jokes é um filme que entende a complexidade do ser humano – o modo como rimos para não chorar, ou choramos enquanto rimos. Fabian Stumm consolida-se como uma voz singular no cinema alemão, alguém capaz de transformar experiências pessoais em uma obra que é ao mesmo tempo íntima e universal.


domingo, 2 de março de 2025

Endless Summer Syndrome (Le syndrome de l'été sans fin, República Tcheca/França, 2023)

“Endless Summer Syndrome”, de Kaveh Daneshmand, é um thriller psicológico com uma abordagem que desafia convenções, especialmente ao integrar elementos queer em sua trama densa e perturbadora. A narrativa acompanha Delphine (Sophie Colon), uma advogada que vive uma vida idílica ao lado do marido Antoine (Mathéo Capelli) e dos filhos adotivos, Aslan(Gem Deger) e Adia(Frédérika Milan), até que uma denúncia anônima revela um segredo devastador.

Antoine mantém um relacionamento com Aslan, seu filho adotivo. Esse ponto de virada não apenas desmonta a fachada de perfeição familiar, mas também posiciona a representatividade queer como um catalisador narrativo, explorado com audácia e ambiguidade.


A presença queer no filme, materializada na relação entre Antoine e Aslan, pai e filho adotivo, é tratada como um dispositivo que amplifica as tensões éticas e emocionais da história. Daneshmand opta por evitar romantizações ou vilanizações fáceis, apresentando o affair com uma neutralidade desconcertante que força o espectador a confrontar suas próprias percepções sobre moralidade e consentimento. Nesse sentido, a representatividade não busca afirmar identidades ou celebrar a diversidade, mas sim provocar, questionando os limites do aceitável e expondo as fragilidades de uma estrutura familiar que se pretendia intocável.


A escolha de escalar Gem Deger, de Playdurizm(2020), co-roteirista e intérprete de Aslan, reforça a intenção de dar profundidade a essa perspectiva queer, ainda que o próprio Deger e o diretor tenham sugerido em entrevistas que o filme transcende a categorização. Para eles, a história é um drama humano amplo, e o elemento queer serve como um espelho para reflexões mais universais sobre poder e transgressão. 


Visualmente, o filme sustenta essa dualidade com uma estética que oscila entre o bucólico e o claustrofóbico, refletindo o contraste entre a superfície harmoniosa e o caos interno da família. A trilha sonora minimalista e as atuações contidas – especialmente de Deger e de Caty Baccega como Delphine – intensificam a sensação de desconforto que permeia a narrativa, enquanto a direção de Daneshmand mantém um ritmo deliberado que dá espaço para o peso das revelações.


“Endless Summer Syndrome” não é um filme queer no sentido tradicional, mas um experimento cinematográfico que utiliza a identidade e a sexualidade como ferramenta de ruptura. Sua força reside na recusa de oferecer respostas ou conforto, deixando o público imerso em um terreno moral ambíguo onde a representatividade queer não é um fim, mas um meio poderoso para explorar as fissuras da condição humana.