quarta-feira, 5 de março de 2025

Carvão (Brasil/Argentina, 2022)

Carvão, estreia em longa-metragem da cineasta Carolina Markowicz, é uma obra que equilibra com precisão o humor ácido, a sátira social e o terror psicológico, oferecendo um olhar cortante sobre a moralidade flexível de uma família rural no interior de São Paulo. Escrito e dirigido por Markowicz, o filme solidifica sua voz autoral, já celebrada em curtas como O Órfão, vencedor da Queer Palm em Cannes 2018, e explora, de forma sutil mas impactante, aspectos queer que desafiam normas rígidas de um contexto conservador.

A narrativa segue Irene (Maeve Jinkings), uma mulher calejada pela vida, que administra uma carvoaria com o marido Jairo (Rômulo Braga) e o filho pequeno Jean (Jean de Almeida Costa). A rotina modesta da família, marcada pelo cuidado com o avô acamado Firmino (Benedito Alves), é sacudida por uma proposta sinistra de uma enfermeira suspeita (Aline Marta): eliminar o idoso para abrigar Miguel (César Bordón), um traficante argentino fugitivo disposto a pagar bem pelo esconderijo. 


O que se desenrola é uma trama que entrelaça o absurdo ao cotidiano, desnudando as contradições de uma comunidade moldada por hipocrisia religiosa e interesses mesquinhos.


A estética de Carvão, capturada pela fotografia de Pepe Mendes, sufoca: a poeira asfixiante da carvoaria e os tons terrosos do interior paulista criam uma atmosfera entre o bucólico e o opressivo. A edição de Lautaro Colace, com seu ritmo intencionalmente pausado, amplifica o desconforto, como o calor persistente de um forno que nunca se apaga. 



O viés queer do filme, embora não se apresente como uma narrativa convencional de identidade ou romance, brota nas entrelinhas, especialmente na construção de Jairo. Markowicz sugere, com uma provocação sutil, que o marido de Irene carrega desejos reprimidos que colidem com a fachada de masculinidade rústica que ele exibe. Um olhar trocado entre Jairo e Miguel, carregado de uma tensão ambígua, é um exemplo marcante — um instante que não se concretiza em ação, mas que planta sementes de inquietação.


Esse subtexto queer ecoa a filmografia anterior e posterior de Markowicz, como O Órfão e Pedágio. Em Carvão, o tema é mais velado, entrelaçado à crítica ampla da hipocrisia social. A possível homossexualidade reprimida de Jairo funciona como metáfora para os segredos que corroem a família e a comunidade. Tal como o carvão do título, esses desejos são combustíveis ocultos, prontos para incendiar se expostos.


Maeve Jinkings brilha como Irene, uma matriarca que transita entre pragmatismo e desespero com uma intensidade palpável. Jean de Almeida Costa, em sua estreia, encanta com uma mistura de inocência e astúcia, enquanto César Bordón confere a Miguel uma aura enigmática que intensifica a sensação de ameaça. Rômulo Braga, como Jairo, opta por uma atuação contida, deixando o público especular sobre as camadas mais profundas de seu personagem.


Carvão é um triunfo de Carolina Markowicz como uma voz única no cinema brasileiro. Seu olhar queer, ainda que submerso, integra-se a uma crítica mordaz da performance social, da religiosidade oportunista e da sobrevivência em um país doente. Para o espectador, é um convite a enfrentar o desconforto  e a perceber que, sob as cinzas da tradição, arde um fogo que resiste a se apagar.



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