sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Delírio (Chile/Costa Rica, 2024)

 

Em “Delírio”, a diretora costarriquenha Alexandra Latishev Salazar transforma o lar em uma armadilha de medo e silêncio. A trama segue  Masha (Helena Calderón), uma menina de 11 anos que se muda com a mãe, Elisa (Liliana Biamonte), para a casa da avó Dinia (Ana Ulloa), cuja mente se perde na demência. Desde o início, a atmosfera é opressiva: portas rangem, sombras se arrastam, e o ar parece pesado demais para uma infância. Elisa tenta proteger a filha de uma presença invisível que ameaça a família, mas o isolamento e a paranoia rapidamente substituem o cuidado.

O filme constrói o terror não a partir de monstros externos, mas do trauma que assombra gerações. Latishev Salazar explora a violência de gênero como uma força espectral que atravessa o tempo e contamina os corpos das mulheres. O pai ausente, cuja morte é duvidosa, paira como fantasma simbólico de um passado de agressão. A casa, úmida e decadente, torna-se extensão da mente de Elisa, onde o medo e a proteção se confundem. 


A estética reforça essa clausura. A câmera observa de perto, quase sufocando as personagens em planos fechados, com luzes frias que acentuam o desamparo. O som, discreto e incômodo, amplifica cada respiração, cada batida de porta. O terror psicológico de “Delírio” é construído com uma precisão minimalista que lembra outras direções femininas que compreendem o horror não como espetáculo, mas como sintoma.


Sob a superfície do terror doméstico, “Delírio” insinua um olhar queer em sua abordagem das relações femininas. Elisa e Masha compartilham um vínculo que ultrapassa o padrão materno convencional, marcado por uma intensidade emocional que beira o desejo de fusão. A ausência de figuras masculinas centrais e a presença de uma linhagem feminina isolada criam um espaço de intimidade não normativo, onde o afeto entre mulheres é simultaneamente terno e sufocante. Esse subtexto queer não se expressa pela identidade sexual das personagens, mas pela maneira como o filme desmantela as hierarquias tradicionais de poder e cuidado, propondo uma outra forma de coexistência frágil, sensorial e dissidente.


“Delírio” é também uma reflexão sobre o que o medo faz ao corpo. Elisa, ao tentar proteger a filha, repete os gestos de quem um dia a feriu. Masha, por sua vez, aprende a sobreviver em um espaço onde o amor é tão perigoso quanto o ódio. Latishev Salazar constrói essa herança emocional como um feitiço que se transmite de mãe para filha, de mulher para mulher, até o esgotamento. O horror aqui é a permanência, a impossibilidade de se libertar completamente das marcas do passado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário