quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Morte e Vida Madalena (Brasil, 2025)

 “Morte e Vida Madalena”, de Guto Parente, é um retrato tragicômico do fazer cinematográfico. Após a morte do pai cineasta, Madalena precisa concluir o filme inacabado que ele deixou,  uma ficção científica B em preto e branco, cheia de monstros, poesia involuntária e confusão. Entre o luto e o caos de uma produção precária, ela tenta manter o barco flutuando enquanto o elenco desaparece, o companheiro abandona o set e a vida insiste em atravessar a ficção.

O filme é um retrato desfocado  e afetuoso  do próprio ato de filmar. Guto Parente transforma a desordem dos bastidores em dramaturgia, celebrando o erro, o improviso e o humor como formas de resistência. Há um espírito mambembe que lembra os cineastas marginais dos anos 1980, mas também uma camada metalinguística muito atual: “Morte e Vida Madalena” fala sobre cinema, mas também sobre a impossibilidade de controlá-lo. Cada corte vibra entre o amor e o desespero, como se a câmera também respirasse entre a vida e a morte.


A presença magnética de Noá Bonoba, mulher trans e travesti, eleva o gesto do filme. Sua Madalena é complexa, grávida e esgotada, mas também radiante e teimosa. Ela desmonta o mito da maternidade sagrada e dá corpo a uma nova ideia de criação:  política, contraditória, viva. Guto Parente a filma com humor e afeto, sem vitimização nem exotismo. O corpo de Madalena é laboratório do próprio cinema independente: fértil, persistente, pulsante.


Nesse universo, tudo é artesanal ,  sets improvisados, figurinos remendados, roteiros que se desfazem. Mas é justamente dessa precariedade que nasce o encanto. “Morte e Vida Madalena” celebra o cinema fora do eixo, aquele movido pelo desejo de existir, e é aí que reside sua potência queer: o desejo de criar em meio ao colapso, de rir do fracasso e persistir mesmo quando nada parece possível. E dialogando com “Estranho Caminho”, último longa do diretor, é também uma história sobre herança, o peso do pai, a continuidade, o gesto de transformar luto em criação.


Com estética que mistura humor nonsense, melodrama, realismo nordestino e sci-fi pulp, o filme ecoa Ivan Cardoso e Roger Corman, mas o resultado é genuinamente pessoal e com sotaque do Ceará. A fotografia oscila entre o preto e branco do filme dentro do filme e o colorido da realidade, dissolvendo toda fronteira entre invenção e vida.


“Morte e Vida Madalena” é cinema como estado de espírito, improvisado, vibrante e insistente. Um tributo à resistência artística e à beleza que brota do espontâneo. É sobre luto e renascimento, mas também sobre uma mulher queer que filma o caos e o transforma em gesto de criação. É o cinema que segue se “auto-parindo” em mundos possíveis. Viva, sempre, Madalena.

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