terça-feira, 28 de outubro de 2025

Futuro Futuro (Brasil, 2025)


Em “Futuro Futuro”, Davi Pretto reinventa o cinema de ficção científica brasileiro com um olhar profundamente humano. Vencedor de Melhor Filme, Roteiro e Montagem no Festival de Brasília, o longa constrói um futuro distópico que soa assustadoramente próximo. Em uma cidade alagada e desigual, onde a elite se isola em condomínios verticais e os pobres sobrevivem entre ruínas, a crise climática e a perda de memória coletiva compõem o pano de fundo para um retrato sombrio do Brasil que poderia ser amanhã.

O protagonista, K, vivido por Zé Maria Pescador, desperta sem lembranças em meio a esse caos. Sua busca por identidade é acompanhada pelo auxílio do Oráculo, uma inteligência artificial que tenta preencher os vazios de memória com imagens sintéticas. A jornada de K é também a de um homem tentando reconstruir vínculos em um mundo onde o afeto foi substituído pela tecnologia e o esquecimento se tornou regra. Pretto conduz essa travessia com um ritmo hipnótico, fundindo realismo social e abstração filosófica.

O futuro apresentado pelo filme é uma extensão das desigualdades do presente. A segregação entre ricos e pobres ganha contornos de ficção científica, mas o que se vê é o reflexo de uma sociedade exaurida. Nas favelas inundadas e nos corredores assépticos dos prédios de luxo, corpos e memórias coexistem em ruínas. A estética, feita de neblina, néon e decadência, evoca o cyberpunk tropical, mas sem glamour: há uma melancolia concreta, uma beleza que nasce do desespero.

Dentro desse cenário de desumanização, o filme insere o afeto e o desejo como forma de resistência. Embora o aspecto LGBTQIA+ não seja centralizado em um arco narrativo específico, “Futuro Futuro” apresenta relações e corpos rebeldes de maneira natural, até mesmo na busca por identidade. O sexo e a ternura aparecem de forma fragmentada, ora performática e fria nas elites, ora genuína e vulnerável nas margens. Essa alternância transforma o afeto em gesto político: existir, sentir e lembrar são atos de rebelião contra o apagamento.

Pretto não oferece respostas, apenas rastros. A memória, a identidade e o corpo são ruínas em reconstrução, e o espectador é convidado a decifrar um mundo que se desmancha na tela. O uso de sons metálicos, enquadramentos claustrofóbicos e luzes difusas reforça a sensação de perda e recomeço, como se cada lembrança recuperada fosse também uma ferida aberta. O futuro, aqui, não é apenas tecnológico, mas emocional, feito de solidão, desejo e busca por pertencimento.

“Futuro Futuro” é uma obra inquieta e visionária, que mistura o delírio da ficção científica à densidade do drama socia. Davi Pretto cria um mundo que reflete o nosso com desconfortante nitidez, onde o esquecimento é política e a memória, revolução. Um filme sobre perder-se para tentar existir novamente  e talvez reconhecer, no meio do esquecimento, o que ainda nos faz humanos.

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