Em “Hedda”, a cineasta Nia DaCosta revisita a peça clássica “Hedda Gabler" (1890), de Henrik Ibsen, e transfere sua ação para a Inglaterra dos anos 1950, imersa em elegância de época e tensões modernas como numa obra de Todd Haynes. A atuação de Tessa Thompson como Hedda, mulher sofisticada, manipuladora e sufocada pelos códigos sociais, é o epicentro de uma narrativa que mistura choque e chama, tradição e rebelião. Entrar no mundo desta Hedda é penetrar num baile em lava: tudo brilha, tudo arde, e toda etiqueta esconde uma ruptura iminente.
O filme aposta forte na textura: a fotografia de Sean Bobbitt constrói um salão luxuoso e voraz onde Hedda parece mais presa do que cômoda. Os vestidos impecáveis, o mobiliário opulento, a luz que afasta o natural e abraça o artifício, tudo contribui para o suspense contido, como se o glamour fosse uma armadilha. Em muitos momentos, Hedda não fala; seu olhar basta para significar tanto desejo quanto malícia.
A narrativa segue uma noite de excessos, traições e armadilhas sociais. Hedda está casada com George Tesman (Tom Bateman) por conveniência e outrora amou Eileen Lovborg (Nina Hoss), aqui reconfigurada como mulher, académica e rival. Quando Eileen reaparece com Thea Clifton (Imogen Poots), a tensão se torna explícita: quem tem direito ao desejo? Quem decide pelo radical? Quem paga o preço da liberdade? A ambientação dos anos 50, marcada por expectativas rígidas de classe, gênero e sexualidade, exacerba o conflito de Hedda entre a imagem que vive e a potência que reprime. E a trilha sonora com versões de Yma Sumac a Bjork? Anacronismo puro!
A escolha de transpor o personagem original Lovborg para Eileen, e de construir entre Hedda e Eileen (com Thea como terceira vértice) uma triangulação afetiva e competitiva, altera profundamente o jogo narrativo. Agora, o passado de Hedda não é apenas arqueologia emocional: é a presença viva de uma forma de amar recusada, silenciada, reformulada. A queerness não se limita ao erotismo latente: está na disputa por autonomia, no duplo padrão de gênero, no usufruto do desejo feminino em meio às cinzas da repressão. 
“Hedda" se impõe na filmografia da talentosa Nia daCosta. Ele revisita um clássico, injeta nele corpo, raça, gênero e desejo, e pergunta quem merece existir fora dos roteiros impostos. Hedda não quer apenas escapar da gaiola de ouro, ela quer incendiar a gaiola, e levar junto quem estiver disposto a olhar de rosto descoberto.
 
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