domingo, 7 de dezembro de 2025

Se Você Tivesse Falado (Sana Sinabi Mo, Filipinas, 2025)

“Se Você Tivesse Falado”, de Shaira Advincula, parte de um gancho dramático poderoso: um jovem pastor, Seph, interpretado por RK Bagatsing, vê sua fé e sua formação ruírem ao descobrir que seu pai, Otep (Nonie Buencamino), viveu toda a vida ocultando sua homossexualidade. O filme estrutura essa revelação como terremoto afetivo e espiritual, deslocando não apenas o filho, mas também a própria comunidade religiosa à sua volta.

A força do longa está na inversão da dinâmica tradicional do cinema LGBTQIA+ filipino: aqui não acompanhamos pais aprendendo a aceitar filhos queer, mas um filho tentando aceitar o pai. Essa chave narrativa confere ao filme uma perspectiva profundamente humana sobre vínculos interrompidos, segredos herdados e a violência silenciosa de um sistema que ensina homens a negarem a si mesmos. A jornada de Seph, constantemente marcada por culpa religiosa e por um ideal moral rígido, torna-se um comentário incisivo sobre como crenças inquestionáveis moldam nossos afetos, nossos limites e nossas feridas.

Advincula utiliza o recurso do passado e presente em espelho para expandir os dilemas de ambas as gerações. As cartas de amor de Otep para Rum (Juan Karlos Labajo) surgem como arquivo emocional, revelando um homem que conheceu o amor apenas pela escrita, e que sacrificou sua verdade para cumprir expectativas impostas por uma família conservadora e por uma igreja que nunca o acolheria. Paralelamente, Seph se vê obrigado a questionar dogmas, revisar memórias e reavaliar sua própria ideologia pastoral, abrindo espaço para vulnerabilidades que jamais pôde admitir. 

Na mise-en-scène, o filme brilha ao articular visualmente essa travessia emocional. A alternância entre Filipinas e Espanha jamais funciona como simples contraste turístico, mas como tradução poética de dois mundos possíveis: um marcado pela rigidez moral e pelo peso do dever familiar; outro, pelas paisagens abertas e pela possibilidade de respirar o que antes era proibido. A cinematografia destaca-se tanto pela ternura com que observa os espaços íntimos quanto pela amplitude simbólica de cenas como o campo de oliveiras espanhol, que funciona quase como um gesto de libertação tardia. 

No cerne de “Se Você Tivesse Falado” está uma potente representação queer construída em sutileza, melancolia e desabafo intergeracional. A sexualidade reprimida de Otep não é tratada como simples revelação dramática, mas como herança cultural marcada por violência patriarcal, expectativas religiosas e medo constante do ostracismo. 

O longa é uma obra que olha para o passado com dor, mas também com capacidade de cura, lembrando que segredos familiares moldam gerações inteiras e que o amor só se cumpre quando encontra espaço para existir. A performance sensível de Bagatsing amarra essa reflexão com precisão emocional, transformando Seph em um protagonista que aprende, aos poucos, que fé e verdade não deveriam ser forças opostas, mas caminhos convergentes de humanidade.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Strange Journey: The Story of Rocky Horror (EUA, 2025)

50 anos depois de seu lançamento, “Strange Journey: The Story of Rocky Horror”, de Linus O’Brien, retorna às origens mais íntimas e explosivas de “The Rocky Horror Picture Show”, reconhecido como o maior filme cult de todos os tempos. Com acesso privilegiado ao legado criativo de seu pai, Richard O’Brien, o documentário funciona como uma viagem afetiva às engrenagens do musical teatral que, antes de virar fenômeno cinematográfico, já chacoalhava plateias com humor ácido, erotismo desobediente e uma desinibição performática sem precedentes. 

As entrevistas centrais do filme com o diretor Jim Sharman, Tim Curry, Susan Sarandon, Barry Bostwick, Patricia Quinn, Nell Campbell e Lou Adler oferecem a espinha dorsal emocional do documentário. Há brilho nos olhos, risadas nostálgicas, espantos renovados. O retorno de Peter Hinwood, o Rocky do filme, ainda em rara aparição, adiciona valor histórico precioso. Trixie Mattel e membros do shadow cast contemporâneo ilustram a passagem de bastão entre gerações, mostrando como Rocky Horror segue sendo catalisador de identidades e libertações pessoais.


A relação entre Linus e Richard O’Brien, que relembra com detalhes como o filme nasceu no teatro, dá ao filme uma camada adicional, quase confessional. A narrativa é atravessada por afeição intergeracional, criando o contraponto ideal ao caos criativo dos anos 1970. Richard compartilha inseguranças antigas, o processo de montagem das letras, as pressões de produção e a forma como o personagem Riff Raff funcionava como extensão de seus próprios conflitos internos. Essa intimidade faz do documentário uma homenagem carregada de afeto, sem perder o rigor histórico.


“Strange Journey” adota um tom celebratório, mas não ignora a ressonância sociopolítica de Rocky Horror. O filme sublinha a força radical de sua abordagem de gênero e sexualidade, dignificando corpos queer, múltiplas expressões de desejo e uma estética camp que se tornou, ao longo das décadas, linguagem própria de resistência. Mesmo sem mergulhar profundamente em conflitos ou polêmicas críticas, o documentário reconhece o lugar do musical como ruptura queer duradoura, ferramenta de identificação para quem cresceu à margem.


O documentário destaca, ainda, porque Rocky Horror se tornou um evento interativo irreproduzível. As projeções em cinemas mundo afora, o ritual de performance, o grito coletivo “Don’t dream it, be it” e a mistura improvável de horror, desejo e humor criaram uma comunidade global que sobrevive ao puritanismo e ao conservadorismo cultural. Linus filma essa devoção com ternura, sem distanciamento sociológico, assumindo que a celebração também é terapia.


“Strange Journey: The Story of Rocky Horror” funciona como registro definitivo e declaração de amor. Frequentemente alegre, sempre reverente, o documentário reafirma a importância do musical como espaço vital para corpos queer, artistas outsiders e fãs que encontraram ali permissão para existir. Em 90  minutos de vibração, afeto e memória, o filme demonstra que Rocky Horror não é apenas um espetáculo, mas um modo de vida que continua a se expandir!

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

O Estrangeiro (L'Étranger, França, 2025)

François Ozon retorna à literatura com “O Estrangeiro”, uma adaptação que privilegia o essencialismo formal e a fidelidade filosófica ao romance de Albert Camus. Ambientado na Argel de 1938, o filme acompanha Meursault (Benjamin Voisin), jovem empregado cuja reação apática à morte da mãe inaugura uma sucessão de eventos marcados pela indiferença, pelo desejo e pela violência estrutural. Ozon recusa a reconstituição suntuosa e constrói uma narrativa que busca a secura do texto original, preservando sua opacidade moral enquanto amplia a dimensão histórica do período colonial.

A fotografia em preto e branco de Manu Dacosse é central para essa proposta. O contraste entre luz intensa e sombra profunda estrutura a atmosfera árida que envolve Meursault, fazendo do sol escaldante um elemento narrativo. A plasticidade da imagem evoca tanto a brutalidade da paisagem quanto a diluição emocional do protagonista, estabelecendo um espaço de tensão entre o calor físico e o vazio afetivo. A Argel aqui filmada não é cenário ilustrativo, mas território de isolamento, desejo e ameaça latente.

A atuação de Benjamin Voisin reforça o caráter enigmático de Meursault, incorporando um desinteresse que beira o mecanicismo, em sintonia com influências de Robert Bresson; A utilização pontual da voz-off resgata o monólogo interno do romance e diferencia a adaptação de Ozon ao permitir que o espectador acesse a lógica interna do protagonista. Essa escolha reforça o projeto de fidelidade literária, devolvendo ao filme a introspecção filosófica que muitas versões anteriores suavizaram.

Mesmo sem ser explicitamente uma obra queer, “O Estrangeiro” insinua uma dimensão homoerótica sutil, sobretudo nas cenas em que Meursault é filmado com corpo semi-nu na praia  o calor, o olhar contemplativo e a exposição sexualizada convergem para criar uma ambiguidade de desejo e corpo como objeto estético. O diretor transforma Meursault em objeto de desejo ambíguo, não apenas para Marie (Rebecca Marder), mas para um olhar erótico mais amplo. A fluidez dessa representação se torna coerente com a tradição de Ozon em retratar identidades em tensão e desejos fora de convenções.

A comparação com o “O Estrangeiro” de Luchino Visconti (1967) ressalta o gesto particular de Ozon. Enquanto Visconti priorizava uma leitura visual e menos introspectiva, influenciada por restrições políticas e pela conjuntura da guerra da Argélia , Ozon aposta na interioridade e no rigor psicológico. Seu filme assume a relação colonial de forma explícita, destacando tensões raciais e sociais que Visconti precisava contornar. 

Ao lidar com o assassinato do árabe na praia,  evento central, Ozon resiste ao melodrama e encara a violência como produto de circunstâncias banais, estúpidas e coloniais. A ausência de ênfase emocional amplifica o desconforto ético da narrativa, ressaltando a brutalidade silenciosa da ocupação francesa e a mecânica da indiferença que permeia os vínculos sociais. 

“O Estrangeiro” é uma adaptação rigorosa, inquietante e profundamente consciente de seu tempo. Ao conjugar fidelidade filosófica, olhar histórico e sensualidade ambígua, Ozon cria uma obra que confronta o espectador com a aridez do mundo de Meursault sem buscar explicá-lo. É cinema que mantém a ferida aberta, que atualiza a complexidade de Camus e que reafirma a capacidade do texto clássico de gerar novas leituras, estéticas, políticas e, aqui, também de um prisma queer.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Um. Natal. Surreal. (Oh. What. Fun., EUA, 2025)

“Um Natal Surreal”, de Michael Showalter, amplia o conto curto de Chandler Baker com humor caótico, afeto e uma pitada de surrealismo enquanto transforma Claire Clauster, vivida por Michelle Pfeiffer, na força gravitacional de uma família que implode enquanto tenta encenar o Natal perfeito. A premissa original sobre o trabalho invisível das mães se expande em uma jornada física e simbólica pelo interior dos Estados Unidos, pontuada por situações bizarras, desde o estacionamento de um shopping até a cozinha movida por doces combustões emocionais. A quebra da quarta parede, em que Claire reivindica filmes natalinos sobre mães e cita clássicos ausentes dessa perspectiva, adiciona camadas metalinguísticas ao caos festivo.

A interpretação de Pfeiffer irradia carisma, trazendo leveza, cansaço e brilho emocional a uma personagem que atravessa o colapso doméstico até descobrir, por acidente, uma espécie de libertação tardia. A expansão dos arcos familiares fortalece esse movimento, integrando as tensões de Channing (Felicity Jones), Sammy (Dominic Sessa) e claro Taylor (Chloë Grace Moretz. O humor se intensifica com a figura de Doug, o genro bisbilhoteiro vivido por Jason Schwartzman, e na rivalidade com outra família aparentemente perfeita.

O toque queer se articula com naturalidade no romance entre Taylor e Donna, (Devery Jacobs) Mesmo secundário, o arco é desenvolvido com cuidado, reforçando o gesto da narrativa de tratar a diversidade como parte orgânica dos afetos familiares. Ainda assim, a personagem tem a fama de namoradeira na família, costumando a cada feriado levar uma parceira diferente.

Visualmente, “Um Natal Surreal” abraça o imaginário clássico do feriado, mas o reorganiza com ironia. Os suéteres natalinos, onipresentes e saturados de personalidade, dividem espaço com o uso estratégico do vermelho, presente não apenas em enfeites, mas em portas, objetos de cena e detalhes arquitetônicos que acentuam a estética exuberante de Claire. A virada “Esqueceram de Mim”, na qual Claire é deixada para trás, oferece uma nostalgia doce e marca o início da jornada caótica rumo ao concurso Mães do Natal.

A trilha sonora supervisionada por Marcus Tamkin reforça a melancolia festiva ao unir covers indie, Brenda Lee e Talk Talk com composições exclusivas lançadas no álbum oficial, que inclui Gwen Stefani, Sharon Van Etten, St. Vincent e the bird and the bee. Essa combinação cria uma atmosfera que respira entre a confusão familiar e a ternura inesperada, traduzindo musicalmente a oscilação entre cansaço e alegria.

“Um Natal Surreal” oferece um retrato caloroso sobre mães, autonomia e amor imperfeito, não apenas denunciando o quanto Claire sustenta emocionalmente sua família, mas também lembrando que ninguém comenta sobre o que a Mamãe Noel faz enquanto Papai Noel leva todo o crédito. A expansão do conto nem sempre equilibra o vasto elenco, mas encontra em Pfeiffer uma presença magnética capaz de unir caos e delicadeza. O resultado é uma comédia natalina com personalidade própria, divertida, sensível e repleta de estilo.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Silencio (Espanha, 2025)

“Silencio”, minissérie de Eduardo Casanova, organiza o horror queer como ferramenta política ao unir vampiras, pandemias e memória histórica em uma narrativa que alterna tragicomédia e fantasia com absoluta precisão estética. A produção divide sua história em três partes que operam como atos de uma peça desobediente, construída em rosa açucarado e horror camp. Essa linguagem desloca a figura da vampira da tradição folclórica para o território das metáforas que interrogam o estigma, especialmente quando o enredo articula o slogan ativista “Silence = Death” ao percurso dessas personagens que lutam contra contaminação, exclusão e apagamento. 

A reconfiguração histórica expande essa dinâmica ao conectar a Peste Negra medieval à crise de AIDS nos anos 80 na Espanha, criando uma genealogia de dor e resistência vivida por mulheres queer que, ao contrário do que ocorreu na vida real, foram frequentemente excluídas das narrativas dominantes sobre a epidemia. Casanova questiona a negligência estatal e o autoritarismo que atravessaram diferentes eras, reposicionando essas vampiras como figuras que denunciam silêncios estruturais.

O núcleo das irmãs encarna uma constelação de afetos que mistura cuidado e conflito em um ambiente tomado por medo, escassez e rejeição. A urgência que envolve a busca por sangue humano limpo transforma essas relações em exercícios de sobrevivência emocional e física, revelando como laços familiares queer se sustentam apesar do antagonismo externo. O romance proibido entre Verónica e o humano Felipe(Omar Ayuso), acrescenta uma camada de erotismo e perigo que atinge seu ápice em uma das sequências mais marcantes da série ambientada no século 19, na qual desejo, musical e morte se entrelaçam com intensidade. 


Filmada inteiramente em 16 mm, “Silencio” assume uma estética que ultrapassa a lógica serializada e se aproxima da materialidade do cinema independente europeu. O uso de tons pastel e da assinatura visual de Casanova cria um mundo que parece simultaneamente encantador e perturbador, especialmente quando os efeitos de maquiagem intensificam as transformações físicas das vampiras. Os interlúdios musicais delirantes, somados à presença de “Porque te vas”, de Jeanette, compõem um ambiente sensorial que brinca com o absurdo sem abdicar da carga emocional.

O repertório queer que estrutura “Silencio” encontra força ao centrar personagens frequentemente deixadas à margem do discurso sobre HIV e AIDS. Ao colocar mulheres e vampiras queer no protagonismo, Casanova desestabiliza hegemonias narrativas e questiona como o estigma se instala de forma desigual entre diferentes corpos. A metáfora das vampiras funciona de maneira surpreendentemente eficiente ao reconstruir debates sobre medo, rejeição e desejo reprimido, reafirmando como o preconceito produz isolamento e destrói vínculos afetivos. 

“Silencio” configura um dos trabalhos mais inventivos de Eduardo Casanova ao equilibrar fantasia e política em uma estrutura que jamais sacrifica caráter autoral. Os episódios curtos aprofundam a intensidade narrativa e favorecem uma experiência condensada que impacta tanto pela violência simbólica quanto pelos lapsos de delicadeza. A mensagem final se impõe com clareza ao denunciar que o silêncio continua produzindo sofrimento e ao reivindicar visibilidade para histórias queer que persistem apesar do apagamento.


Cazuza: Além da Música (Brasil, 2025)


“Cazuza: Além da Música” constrói um mapa afetivo e político do artista, articulando imagem, memória e contexto social em uma narrativa que privilegia a curadoria cuidadosa ao invés da dramatização excessiva. A direção de Patrícia Guimarães entende que o diagnóstico de HIV, longe de reduzir Cazuza ao estigma, catalisou parte de sua produção mais inventiva, cristalizada em álbuns como “Ideologia” e em canções que se tornaram símbolos da rebeldia brasileira, como “Brasil”. Ao situar o artista nesse percurso, a série enfatiza seu desejo contínuo de criar, amar e intervir no mundo, reforçando o caráter pulsante que sempre atravessou sua trajetória.

Ao revisitar momentos decisivos da vida de Cazuza, “Cazuza: Além da Música” destaca seu gesto pioneiro ao assumir publicamente a sorologia, um ato que expandiu o debate sobre saúde pública e abriu caminhos para que muitas pessoas pudessem afirmar suas vivências sem medo. A produção retoma esse impacto por meio de depoimentos emocionados de Lucinha Araújo, que relembra como o posicionamento do filho ajudou “milhares de soropositivos a mostrarem seus rostos”. A série atualiza esse marco histórico ao conectar a luta de Cazuza aos desafios que pessoas vivendo com HIV ainda enfrentam, consolidando o documentário como ponte entre passado e presente.

A força de “Cazuza: Além da Música” se amplia com a presença de depoimentos de pessoas que conviveram de maneira intensa com o artista. Frejat, Sandra de Sá e Ney Matogrosso ajudam a reconstruir a energia criativa que definia Cazuza como figura pública e como amigo. Denise Dumont, que o descreve como “imenso”, contribui para um retrato íntimo, reforçando a dimensão generosa e apaixonada que o público muitas vezes só percebia pelos palcos. Esses depoimentos funcionam como pilares de uma narrativa que se desdobra com honestidade e respeito.

O trabalho de Patrícia Guimarães ganha densidade ao acessar o acervo pessoal cedido por Lucinha Araújo, que abre memórias familiares e registros raros do artista em sua casa na Serra Fluminense. São imagens que aproximam o espectador de um Cazuza cotidiano, confortável e espontâneo, expandindo a compreensão sobre quem ele foi além das performances e dos holofotes. A Conspiração Filmes, em parceria com o roteiro de Victor Nascimento e a supervisão de Carolina Albuquerque, articula esse material de forma cuidadosa, reforçando a ideia de que a série se posiciona como tributo artístico e declaração política.

“Cazuza: Além da Música” dedica atenção especial às expressões afetivas e estéticas que marcaram a bissexualidade do artista, incorporando sua liberdade poética como eixo dessa identidade. A série reconhece o alcance queer de sua trajetória sem recorrer à espetacularização, observando como a fluidez de suas relações e a intensidade de suas criações coexistiam com um Brasil em constante tensão.

Distribuída em quatro episódios que cobrem desde o “menino Agenor” até o auge da vida pública e o período pós diagnóstico, “Cazuza: Além da Música” encontra seu ponto de equilíbrio ao posicionar o artista como figura transformadora da música e da saúde pública no país. A série evita a nostalgia pura e aposta em uma leitura que reivindica a centralidade de sua coragem e de seu legado.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Ladybug (EUA, 2025)


 “Ladybug”´ é um thriller sobrenatural queer que entrelaça desejo, luto e ameaça com uma sofisticação rara no circuito indie. Tim Cruz constrói uma atmosfera que aparentemente acolhe, mas logo revela um terreno emocional contaminado por violência e paranoia. A cabana em Bedford, isolada e carregada de histórias, estabelece um espaço onde a arte, o desejo e a memória criam tensões constantes, enfatizando a fragilidade do artista plástico  Grayson e a presença perturbadora de um amor que ultrapassa a fronteira da vida.

O roteiro coescrito por Cruz e Anthony Del Negro transforma Grayson, interpretado pelo próprio Del Negro, em um artista queer à beira de um colapso afetivo e criativo. O encontro com Sawyer (Zachary Roozen), funciona como ponto de ignição para a narrativa, além de uma referência ao clássico “Ghost”. A química entre os dois atores ilumina o filme desde o início, sugerindo um romance marcado por intensidade e risco. O fantasma de Sawyer, vítima de um serial killer homofóbico, retorna como figura sedutora e vingadora, ampliando o conflito entre desejo e perigo que permeia toda a trama.


A direção de Cruz destaca o poder da imagem como elemento narrativo e emocional. “Ladybug” dialoga com influências diversas, de “The Shining”, “Caché a “O Retrato de Dorian Gray ", utilizando enquadramentos que insinuam presenças e sombras que moldam a instabilidade de Grayson. Os movimentos laterais de câmera, inspirados nos Irmãos Pang, deslocam a atenção do espectador e criam constantes microchoques visuais. Esses recursos fortalecem o caráter psicológico do filme, onde a percepção é manipulada a cada cena e a arte se torna signo de forças que atravessam o protagonista.


A construção estética incorpora a mitologia filipina dos Anito, sugerindo que espíritos podem permanecer ligados a espaços e objetos. Essa escolha culturalmente fundamentada amplia o alcance simbólico da narrativa, oferecendo uma explicação coerente para a ligação sobrenatural entre Sawyer e a cabana. Ao mesmo tempo, a montagem acelera e interrompe percepções antes que sejam confirmadas, estratégia que intensifica a sensação de vigilância e instabilidade emocional, reforçando o caráter fragmentado da experiência de Grayson.


O elenco amplia a potência dramática do filme ao reunir talentos queer e veteranos do terror. Além de Del Negro e Roozen, a presença de Scout Taylor-Compton, de "Halloween" como Wendy, a agente e amiga pessoal de Grayson, Lisa Thornhill como Mikayla e Nancy Stephens como Rosalee adiciona densidade às camadas afetivas e aos momentos de tensão. A participação desses nomes cria um contraste entre a energia indie do projeto e um legado do horror norte-americano que o filme recupera com carinho e inquietação. O flerte constante entre humor, erotismo e violência amplia a complexidade do mundo interno dos personagens.


“Ladybug” é uma  obra marcante dentro do terror queer contemporâneo ao combinar romance fantasma, perseguição real e reflexão sobre violência anti-queer com originalidade. Cruz transforma a cabana em ponto de contato entre mundos, onde arte e morte convergem com intensidade crescente. O resultado é um estudo atmosférico sobre paixão, trauma e criatividade, conduzido por uma estética inventiva e por atuações que sustentam a densidade emocional da história. A trajetória de Grayson e Sawyer reafirma o cinema queer como espaço fértil para reinventar o terror e suas possibilidades expressivas.

Ponto e Vírgula (Brasil, 2024)

 “Ponto e Vírgula” integra uma das vertentes mais urgentes do cinema brasileiro, ao deslocar para a terceira idade um conjunto de afetos que raramente alcança protagonismo. Dirigido e roteirizado por Thiago Kistenmacker, o curta de 2024 reafirma o compromisso do cineasta com histórias LGBTQIA+ que atravessam periferia, dissidência e memória. Seu percurso é marcado por trabalhos como “Voltando para casa”, “Canto da Sombra”, “Ontem” e “Memória de quem (não) fui”, e aqui a ampliação geracional surge como gesto político, trazendo para o centro dois homens idosos cujas trajetórias foram moldadas por expectativas heteronormativas e por décadas de apagamento.

Wilson Rabelo e Buda Lira, colaboradores frequentes de Kleber Mendonça Filho, interpretam João e Vitor, antigos amantes que a vida separou. Após a morte da esposa de um deles, o reencontro ocorre quando ambos já passaram dos 70 anos. Esse retorno não funciona como reparação melodramática, mas como abertura sensível para um tempo suspenso, onde o passado insiste em reaparecer. O filme organiza suas tensões a partir de olhares, hesitações, toques e diálogos contidos, permitindo que o reencontro expresse as marcas daquilo que foi vivido em segredo. O título sugere essa temporalidade intermitente, indicando que o que parecia encerrado pode ganhar continuidade, mesmo que impregnado por luto, vergonha, desejo e memórias não nomeadas.

A direção de Kistenmacker evidencia maturidade estética ao trabalhar com precisão as presenças desses corpos envelhecidos, frequentemente negligenciados pelo imaginário queer.  A câmera investiga gestos cotidianos com cuidado, ampliando as nuances do reencontro e explorando o impacto do tempo sobre vínculos interrompidos pela homofobia estrutural. A trilha de Liniker atua como extensão afetiva das memórias, criando uma camada sonora que acolhe, tensiona e ressignifica a história desses homens. A presença artística de Rocco Pitanga reforça o peso simbólico da narrativa, alinhada à escolha de um elenco composto por figuras negras e veteranas, algo que adiciona dimensão social à trajetória desses personagens.

O reconhecimento recebido em Gramado confirma a relevância de “Ponto e Vírgula”. O curta conquistou três Kikitos, incluindo Prêmio Especial do Júri, Melhor Ator para Wilson Rabelo e Melhor Trilha Musical para Liniker, resultado expressivo para um filme que inscreve a velhice queer no panorama de festivais brasileiros. Essa acolhida crítica e institucional reflete tanto a força das atuações quanto a delicadeza com que o filme estrutura afetos marcados por silenciamento histórico, racismo e normas de masculinidade. Há uma potência particular no modo como Kistenmacker articula intimidade e história, inscrevendo o desejo gay num recorte racial, de classe e geracional pouco retratado.

Com 17 minutos, “Ponto e Vírgula” constrói uma narrativa breve, mas de grande densidade emocional. A obra se destaca por rejeitar explicações excessivas, concentrando-se no impacto silencioso do reencontro entre dois homens que atravessaram a vida carregando as consequências do armário. O curta consolida um gesto fundamental dentro do cinema queer brasileiro, ao iluminar desejos que sobreviveram à repressão e ressurgem na longevidade como possibilidade de reconexão. A sensibilidade de Kistenmacker reafirma uma busca por histórias que ampliam o imaginário LGBTQIAPN+ para além dos recortes habituais, tornando o filme uma peça marcante na representação das masculinidades no país.